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Ciborgues, Replicants e andróides ou O manual de como construir humanos

Humanóide, do sentido de ter forma ou característica humana, mas como se a casca-invólucro fosse deveras cópia, mesmo que aperfeiçoada e desbastada da variabilidade corpórea, falsidade hominídea. Humanóide também do que parece ou age como humano, nessa de mimetizar, mesmo que parcialmente, especificidades que só o humano possui. Onde está o ponto ótimo de se dizer: humano? O que nossa carne possui como traço humanóide?

De genes e filos zoológicos estamos abastados, mas pensar aqui a noção de humano, de carne humana, diz de outras definições por vezes embaçadas. Organismo de partes anatomo-fisiologicamente encontradas no contemporâneo como Homo Sapiens Sapiens, repetidos em variação e constância numa estreita cadeia de proteínas, minerais e muita água – humano elemento. Humano aquele que deriva da acumulação meramente instintiva ou mutacional para construir sob seu intelecto e relação grupal algo chamado de cultura, receptáculo de seus acúmulos seculares em hibridação muito mais veloz que a celular e muito mais efetivo em estoque – humano símbolo. Dessa luz que nos ilumina o avantajado cérebro vem as profecias de outros planos que nos escolhem como ferramenta de conexão, numa metafísica construída entorno de um homem que, por toque divinal, lê e usa o mundo a seu dispor – humano deus. Diz-se de direitos humanos, algo que definiria por meio de convenções “elementares de sobrevivência” algo de uma raça animal que se abriga sobre o nome de “humana”, apontando aqui atos e usos da vida humana que se afastam a todo tempo dessas premissas de preservação e salvaguarda racial – humano indivíduo. Outro ponto seria o tão falado adjetivo de humanizar, utilizado de maneira muito parcial e em larga escala em nossos tempos atuais a apontar atitudes, comportamentos, ambientes e regulações coletivas que apontam para uma “suavização” ou certa proteção do humano ainda em nós – humano frágil. Tanto mais a palavra humanizar também se desloca para afetos e comportamentos que o real pode possuir e que se aproximam de certa manifestação humana de sensibilidade, inteligência ou arbítrio (desde nossos cachorros adestrados a forças da natureza divinizadas em inteligência e indulgência) – humano sábio e/ou sensível. Sem questionar nenhum segundo é com nossos rostos, números de registro geral, aquisições de propriedade e nome próprio que seguimos humanos sem atenção alguma nesse ser – humano rebanho. Dum antropocentrismo tiramos nossas balizas lingüísticas, nossas coordenadas de habitação e nossa imaginária e bem vincada linha de divisão entre humano e resto.

Mas o que define algo de humano em cada corpo elementar-simbólico-divino-individual-frágil-sensível-sábio-arrebanhado? Qual limite de existência nos faz adquirir o status de humanos que há tantos de nossa estirpe parece ser negado?

Índios, loucos, trans, mulheres, bichos, inteligências artificiais, tudo sendo humano sem o ser. Um nome de família mais humanizado que um menino do tráfico. Discursos de dignidade na boca de humanos que tem como objetivo a seleção de nós são escolhidos em meio aos “sujos de índole”. Uma indústria de metal manipulado tendo quase um coração forjado e marketings afetuosos erguida sobre uma floresta viva, mas que é deveras selvagem para ser humana. Uma desintegração é o que aparenta. Talvez uma agonística que desvelam relações de poder e seus discursos íntimos.

Mas por aqui uso os ainda metafóricos ciborgues como pedra de torção. Máquinas habitantes dos discursos da ficção científicas, os ciborgues, robôs de diversas formas e funcionamentos, são uma plataforma-espelho onde o humano em nós se confronta com seu próprio reflexo. Sejam robôs completos, inteligências artificiais ou mesmo combinações multifacetadas entre o orgânico e o tecnológico, tais humanóides encarnam essa experimentação, refratando a questão humana ao infinito. E esse reflexo é parco, de tão real e sublime de tão questionador.

Há uma ininteligibilidade na natureza, uma perdição de nossa origem que desestabiliza a raça numa constante tentativa de se apartar em algum momento da arbitrariedade dessa, ou pelo menos remontar rastros perdidos do que nos formou. Humano que manipula do mundo e do tempo refazendo sempre uma imagem sua ou triangulando caminhos. Esse que muitas vezes nega sua organicidade busca no criar do ainda mais humano uma experimentação. Andróides são humanos filhos de uma humanidade, em experimentações especializadas de nossos ideais e aspirações. O que se perde no caminho? Imagem do humano, melhora planejada de aspectos funcionais, esses seres artificiais perdem a sujeira natural e a miscelânea do mundo, indo para um aperfeiçoamento abstrato sem base vital para tal. Humano bizarro, repuxado em partes específicas, humanóide disforme, a-natural. O que nos torna humanos é ser natureza suja e imemorial, violência rude de ter célula, mas os experimentos tocam algo indomável. Num disparate da fabricação o mecano-humanos refletem inflam e racham nossas perfeições, vivificando para nós que só uma célula não garante a solução de nossa pergunta.

Blade Runner (Ridley Scott, 1982), Ghost in the Shell (Mamoru Oshii, 1995) e 2046 (Wong Kar-Wai 2006). Três filmes que tem a questão ciborgue como ponto de exploração. Três entradas distintas, usos e materiais que incorporam esse translado de limites. Fronteiras diluídas, desafios presentificados e pulsantes, essas obras abordam a figura do andróide em suas diversas funções – uma futurística ação bélica de revolta dos andróides escravos, a ação policial e a caçada por dispositivos especializados de inteligências artificiais, o amor e presença do outro – fazendo da vivência concreta tão natural a todos nós uma questão complexa: o que faz um humano, humano? Como se constrói um humano?

*

1Replicants – os que devem replicar, repetir, mimetizar e não mais que isso. Assim são chamados os andróides de Blade Runner, 1982, onde, num futuro não muito distante eles são produzidos como corpos de trabalho para colônias interplanetárias e tantos outros usos. Durante a trama do filme alguns replicants são caçados pelos chamados Blade runners, clandestinos na Terra após revoltas nas colônias extraterrestres. “Tyrel: Comércio é nosso objetivo aqui na Tyrel. Mais humano que o humano é nosso modo.” (Blade Runner, 1982, 21’46”, tradução livre) – enuncia efusivamente o presidente da corporação produtora dos andróides ao conversar com Deckart, personagem principal contratado para matar os replicants revoltosos. Algo foge do planejado e a extinção das máquinas defeituosas é necessário para manter o sistema. Toda a cidade, uma Los Angeles distópica, mostra-se um grande caos de sujeira, tecnologia, consumo e entrecruzamentos de miséria e luxo, e isso deve permanecer assim por meio do controle e da vigilância constante.

Diversos modelos, um negócio de trabalhadores braçais a companhia distrativas, mas sempre um negócio. “Deckard: Replicants são como qualquer outra máquina. Ou são um benefício ou um risco. Se forem um benefício não é meu problema.” (Blade Runner, 1982, 17’27”, tradução livre) como repete Deckard, ao demonstrar seu teste de averiguação de replicants.

A presença dos androides é baseada na fuga, no invizibilização de suas diferenças em meio aos humanos para evitar em extinção em massa. Inicialmente meras máquinas repetidoras, agora caçados por se tornarem humanos demais. Salto esse de sua inteligência artificial que além de somente seguir procedimentos pré-programados criaram novas conexões e atingiram a mais vital das dádivas: o afeto. Baseados em memórias implantadas ou programações bem estabelecidas os replicants tornam-se problema quando dobram sua repetição desenvolvendo uma autonomia que a máquinas jamais seria concedido. Afeto esse que é a base do teste que detecta andróides, sendo que se espera deles respostas emocionais inconclusas ou inexistentes. Mas alguns começam a florescer em afetos e isso embaralha os códigos. Insuportável ter essa dádiva compartilhada com máquinas, impossível suportar essa alforria que denuncia a pobreza do humano orgânico. Intolerável audácia esse acesso à transformação.

Afeto e autonomia, aspectos tão profundamente humanos tornados movimentações que fazem da existência algo fora do controle eletrônico. Deckart está a todo tempo na perseguição dos robôs amotinados por caminhos diversos que questionam sua própria missão. Suas investigações para “aposentar” (eufemismo para assassinar utilizado no filme) os andróides o levam em encontros violentos e perseguições pela cidade, mas também é uma andróide que faz experienciar outras conexões: a paixão. Com Rachel, replicant dócil e programada para ser praticamente humana, acaba por desenvolver uma relação amorosa – como amar algo que aprendeu o afeto baseado em memórias implantadas falsamente? O que difere as respostas de placas e fios eletrônicos do coração de músculo e neurônios?

Todos os andróides são mortos por Deckart e o encontro final com o líder do bando marca a torção de toda a nossa questão. Numa das cenas mais marcantes do filme, Deckart luta com Batty, o líder, e acaba dependurado em uma viga de metal pronto a cair “Batty: Uma experiência viver com medo, não é? Isso é o que é ser um escravo. Eu vi coisas que as pessoas não iriam acreditar.” (Blade Runner, 1982, 1: 40’ 56, tradução livre). Após isso estranhamente Batty resgata Deckart da queda, o coloca no telhado enquanto chove bastante. Aproxima-se com uma pomba em uma das mãos e completa sua fala: “Naves de ataque em chamas fora por sobre o ombro de Orion. Eu assisti C-beans brilharem no escuro perto do portão Tannhauser. Todos esses momentos se perderão no tempo… como lágrimas na chuva… Hora de morrer.” (Blade Runner, 1982, 1:43’ 26, tradução livre). A batalha se resolve com a morte de Batty, mas não sem antes deixar estranhas conexões. A morte é um medo tão original do humano que ele se compadece de Deckart, comungando com ele uma mesma existência. O que faz dum robô algo além? Memórias? Emoções? Inteligência? Liberdade? De todas as camadas da cidade caótica e sofisticada (ALLIEZ, 1988), com seus estratos de vigilância, invisibilidades e deslizes, sobeja ainda a existência como errância. A repetição que se quebra na vivência titânica dos andróides destrói toda a perseguição, injetando o humano com sua pungência de que existir talvez seja pra além de matéria orgânica ou nascimento biológico.

2 – O chamado que impele Major Motoko Kasunagi, personagem central de Ghost in the Sheel, 1995, de se aprofundar e conectar com o mundo é não codificável, escapa. Na animação passada no ano 2029, temos como personagem principal Motoko, uma agente biônica da polícia especial de um departamento (divisão política do mundo no filme, algo como grandes impérios sempre em conflito) futurista. Biônica no sentido de ser uma simbiose entre o biológico e o eletrônico, sendo que Major possui um corpo robótico e melhorado em diversos sentido, resguardando alguns tecidos e partes de um corpo humano “original”. Cito original por ser esta a questão crucial da personagem, saber se teve uma vida humana pregressa, se foi completamente fabricada ou se é algo ainda por decifrar. Há a distinção entre o ghost (algo como o fantasma ou alma) e shell (concha, casca) que os personagens se referem todo o tempo como sendo vivências de dimensões distintas. A primeira refere-se a uma vivência individual do nível da consciência ou espírito que tem valor maior e certa singularidade de cada ser, e a outra a vivência corporal e concreta que, pelo contexto de tecnologia, pode ser refeita, manipulada ou substituída. Em uma passagem, um dos agentes parceiros de Major indica que, mesmo com tal distinção, não se tratam de dimensões somente biônicas ou estáveis quando diz: “Battú: Experiências virtuais, sonhos… Todo dado que existe são ao mesmo tempo realidade e fantasia. O que quer que seja isso, os dados que uma pessoa recolhe em tempo de vida é minúsculo pedaço comparado ao todo.” (Ghost in the Shell, 1995, 27’40”, tradução livre) Os limites de tais dimensões se confunde, pondo tudo em processo de questionamento e fabricação. O reflexo, elementos mais importantes do filme em cenas e falas diversas, aparece aqui como elemento de identificação e falsidade, imergindo uma faceta na outra, indicando que a criação não respeita fronteiras nem lida com materiais puros – ela invade e vitaliza de circuitos computadorizados à células cerebrais.

Há um alvo a ser perseguido e eliminado no enredo, o chamado Puppet Master (Mestre de marionetes), entidade que habita a rede interligada de informações. Inicialmente um programa de espionagem que entra em colapso e se autonomiza. Ele se identifica como uma produção inteligente da imensa rede de conexão computadorizada, esta mesma que ele busca transladar da existência virtual para outro nível de existência. Suas falas trazem quebras importantes ao se pensar a vida, quando diz ao argumentar com um dos chefes do departamento que o mantinha em prisão:

Puppet Master: Também pode-se argumentar que o DNA é nada mais do que um programa concebido para preservar a si mesmo. A vida tornou-se mais complexa no esmagador mar de informações. E a vida, quando organizada em espécies, depende de genes para ser seu sistema de memória. Assim, o homem é um indivíduo apenas por causa de sua memória intangível… e memória não pode ser definida, mas define a humanidade. O advento dos computadores, e a subsequente acumulação de dados incalculáveis deu origem a um novo sistema de memória e pensamento paralelo ao seu. A humanidade tem subestimado as consequências da informatização.

(…)

Nakamura: Absurdo! Não há nenhuma prova de que você é uma vivente, pensante forma de vida!

Puppet Master: E você pode me oferecer a prova da sua existência? Como você pode, quando nem a ciência moderna nem a filosofia podem explicar o que é a vida? (Ghost in the Shell, 1995, 48’27”, tradução livre)

Em um enredo onde a falsidade de memórias, ideais e a existência concreta são questionadas, o filme explora desde uma cidade moderna e decrépita a conexões expansivas de consciência que questionam a realidade em seu todo. Alçando mergulhos profundos em questões filosóficas insolúveis, a animação de extrema ação e perseguições bélicas se monta por sobre os caminhos de questionamento da personagem principal. O estilo cyber-punk mesclado com amplas e vagarosas reflexões tecem um estranho balanço entre a decadência e o renascimento, tendo corpos em explosão e a experiência da conectividade infinita como subprodutos desse processo. Major Motoko pulsa entre a inexistência de qualquer afeto para o questionamento completo de sua identidade. Ataca e reflete a todo instante, escorrendo pelas frestas de estabilidades tão firmes quanto um esqueleto de titânio e a árvore de vida evolutiva. Brechas estas que indicam outro salto, outra expansão. Em uma cena marcante do anime Motoko está realizando um mergulho profundo no mar em seu dia de folga, atitude essa questionada por seu companheiro Battú também policial biônico, que pergunta para quê uma ciborgue mergulha em profundidade com um corpo que não flutua, o que ela busca, o que sente. No que Motoko responde com frases curtas e secas sobre tocar sentimentos como perdição, ansiedade, solidão, mas também certa esperança. Um lampejo de que ao emergir possa ser outra pessoa. Ela mesma lança cruciais reflexões nesse momento:

Há inúmeros ingredientes que compõem o corpo e a mente humanos, como todos os componentes que produzem a mim como um indivíduo com a minha própria personalidade. Claro que eu tenho um rosto e uma voz para me distinguir dos outros, mas meus pensamentos e memórias são exclusivos apenas para mim, e eu carrego um sentimento de destino próprio. Cada uma dessas coisas são apenas uma pequena parte disso. Eu coleto informações para usar de meu próprio jeito. Tudo isso se combina para criar uma mistura que forma a mim e dá suporte a minha consciência. Sinto-me confinada, somente livre para expandir-me dentro de limites. (Ghost in the Shell, 1995, 31’43”, tradução livre)

Seu cérebro orgânico entrelaçado com um corpo ciborgue não é prisão, são nós de conexão, visto que sua maior rebeldia é conseguir fazer da base bio-mecânica somente estação de transição, forma de expressão de processos inteligentes virtuais e concretos. Esse descontrole vital de uma rede virtual é impalpável à existência mundana, que vê amolecer sua base firme do atual e perder a rédea firme do fluxo informativo. A combinação é o trunfo para algo além do real sem seu aniquilamento, mas numa expansão incontrolável. A perseguição de Major Motoko e seu encontro com o Puppet Master concluem-se numa fusão entre sua existência e a dele, num convite de tornarem-se um só ser em outro nível de existência que não a parca realidade. A proposta de fusão surge para poderem realizar certa “reprodução” ao deixar que o novo ser em combinação deles dois traga outra existência possível, buscando a variabilidade que a vida demonstra frente aos procedimentos de cópia que os circuitos utilizam.

Puppet Master: Refiro-me a mim mesmo como uma forma de vida inteligente, porque eu sou senciente e capaz de reconhecer minha própria existência, mas no meu estado atual ainda estou incompleto. Faltam-me os processos mais básicos inerentes a todos os organismos vivos: reproduzir-se e morrer.

Major Motoko Kusanagi: Mas você pode copiar a si mesmo.

Puppet Master: Uma cópia é apenas uma imagem idêntica. Existe a possibilidade de que um único vírus poderia destruir todo um conjunto de sistemas e cópias não dão origem a variedade e originalidade. A vida se perpetua através da diversidade e isso inclui a capacidade de sacrificar-se quando necessário. Células repetir o processo de degeneração e regeneração até que um dia eles morrem, obliterando todo um conjunto de memória e informações. Só permanecem genes. Por que repetir continuamente este ciclo? Simplesmente para sobreviver, evitando os pontos fracos de um sistema imutável.

(…)

Motoko: Outra coisa. O que garante que eu vou continuar sendo “eu”?

Puppet Master: Nada. Mas ser humano é continuamente mudar. Seu desejo de permanecer como está é o que, em última análise, te limita. (Ghost in the Shell, 1995, 1:09’35” e 1:12’03”, tradução livre)

O que te torna real? Qual o limite? O que nos fica são os abalos, uma vontade de existência e uma imensa combinatória que nos apequena, mas nos dando multifaces em um espelho luxuoso.

3 – Mas é em 2046, filme do coreano Wong Kar-wai de 2006, que o limite dos ciborgues e do humano se dissolvem em comunhão. O filme ambientado em uma atmosfera dos anos finais de 1960 em Hong-Kong, traz como personagem principal um escritor Chon Mo Wan desiludido com uma antiga história de amor, e que por diversos descaminhos e encontros com amantes e passantes vai a explorar qual a matéria do amor e da vida. Está escrevendo uma história, uma história dentro da narrativa do filme se passa no ano de 2046. A sequência futurista é ambientada em um trem tecnológico que leva as pessoas um lugar chamado 2046, onde vão em busca de alguma lembrança perdida. Muitos vão a 2046 depositar segredos para se livrarem deles, mas nunca niguém havia retornado de lá, somente o escritor-narrador da história. “Chow Mo Wan: Sempre que alguém pergunta por que eu saí de 2046, eu sempre lhe dou alguma resposta vaga. Era mais fácil.” (2046, 2006, 2’46”, tradução livre). Baseado em uma história oriental – a de que quando se possui um segredo inconfessável pode-se procurar uma árvore, cavar um buraco em seu tronco, contar a esse buraco seu segredo e depois fechar-lo com argila para não se descoberto por ninguém –, chega-se a esse local em um trem de longa viagem servido por andróides. Ali se passa toda a sequência no futuro, não há paradas, estão sempre em deslocamento e certa desolação. Há sempre o entrecruzamento entre a vida real do escritor e suas incursões no enredo de seu livro, numa mistura de resgate de memórias perdidas, novas experiências e uma busca incessante na decifração das relações humanas. Por que partimos? A que retornamos ou o que nos fixa aqui? “Chow Mo Wan: Amor é sempre questão de timing. Não é bom encontrar a pessoa certa muito cedo ou tarde demais. Se eu tivesse vivido em outro tempo ou lugar … minha história poderia ter tido um final muito diferente.” (2046, 2006, 1:36’29”, tradução livre).

Serviçais de inicio, as andróides – todas mulheres – estão para realizar qualquer pedido dos viajantes, mas Chow Mo Wan, que viaja no trem acaba por se envolver. Sozinho durante todo o percurso, ele tem como companhia uma andróide. E por ela se apaixona. Ele, desolado por um amor perdido, encontra nela outra chance. Perdeu o amor por não saber se era correspondido e hesitar se declarar, mas decide declarar-se a andróide. Ela também o ama, mas por um defeito de programação que retardava seu tempo de reação, não consegue confessar seu afeto tendo um delay, certo atraso de resposta, em todas as suas reações e respostas. Ele insiste em se declarar e querer que ela vá com ele, mas, sem resposta, acaba por desistir. Esquecer, abandonar, refazer-se. Os segredos e as expectativas dão sempre o tom do enredo de todo o filme, vivenciando que o encontro mais do que ser uma escolha é uma combinação, um convite. “Chow Mo Wan: Eu tenho um segredo para contar a você. Você partirá comigo?” (2046, 2006, 1: 25’05”, tradução livre) O pensamento é um delay, o afeto uma conexão e segredar isso é fenecer em partida. Corpos tecnológicos ou não, estamos sempre a refazer programações, repetir movimentos e acumulando informações, tendo que nos liga ao mundo como único dado confiável. Não importam aqui os corpos, mas as conexões. Não importam os pontos de chegada e sim o deslocamento. Não importa o segredo, mas o afeto.

Sutil humanidade, essa que se desenrola em apaixonamento.

*

Como se medem graus de humanidade? Qual o corte entre humano e resto? Processos lógicos e raciocínios são parcos. Transformar o mundo para certo objetivo, isso os fungos já fazem há milênios e a própria atmosfera se revolve em mutações todo o tempo. Autonomia, afeto, combinação, virtualidade, conexão, palavras técnicas para nossa constituição, mas afiadas ao tocar nossa perecível existência. Os humanóides-espelho nos mostram nossa processualidade: reprogramam-se para emocionar, escapam dos limites preestabelecidos, mutacionam com o mundo por sobre bases eletromagnéticas, constroem carne humana com metais e plástico nos encontrando na margem do toque. A fabricação de humanos é feita a todo instante, fabrica-se. Mas é na integração com o entorno que surgem singularizações e a vida se mostra humanóide em dispersão. Conexões que nos refletem em existência, limites a serem torcidos em singularidade na agonística que é estar humano, estar real. E uma mistura necessária que nos aqueça o corpo.

O que queremos desses supostos falsos-gente, o que eles fazem que precisamos tanto deles? Não precisamos de seus corpos cibernéticos para brincar de eternidade ou mesmo aguçar suas faculdades mentais supra-humanas para experienciarmos perfeição. Deles só podemos ouvir uma coisa: a singularidade do grito que eles podem dar e nós não.

Referências:

ALLIEZ, Eric. A Cidade Sofisticada. IN: Contratempo. Ensaios Sobre Algumas Metamorfoses Do Capital. Tradução: Maria De Lourdes Menezes Rio De Janeiro: 1988, Forense-Universitária.

Filmes:

2046 – os segredos do amor. Direção: Wong Kar-Wai, 2006.

Blade Runner. Direção: Ridley Scott, 1982.

Ghost in the Shell. Direção: Masamune Shirow, 1995.