Arquivo do mês: março 2020

Como sabotar as distâncias?

 

Como sabotar as distâncias_

  • Esse ensaio consta em minha tese “Movimento orbital – ativações do plano estético” defendida na UFF em Niterói no ano de 2018. Em tempos de reclusão e explorações de diferentes presenças possíveis penso que tem um caminho de sensibilização interessante, de convocação à criação e vem em celebração aos nossos que nos ajudam a seguir.

Passagens diversas, triangulações que não se apegam a pontos fixos. Deslocamento, apego, víveres.

Um percurso, tantos trechos.

Nós em passagem.

Carregar a casa é muito pesado, alguém sabe onde ela fica? Movimentos, sobrevivência e todos os passos. Onde ela fixa? Fazer a mala, documentos, piscadelas e seguir trançando os intervalos. Somos algo que se desloca ou o próprio deslocamento? Como se vivencia o caminho?

Estar em dinamismo faz com que a fugacidade das coisas ganhe drama. As deambulações se constituem em quilômetros de asfalto ou nesse salto constante dentro do peito – sempre certa turbulência, certa trajetória. Fixar pontos, medir a terra em contenções métricas, demarcar imaginárias retas, planos que buscam assentar de algum modo os deslocamentos, mas que não salvaguardam o que constitui esse caminhar. É questão de como entrar nos movimentos, de sentir que efeitos a debandada dispara nesses encontros, questão de como, enfim, trafegar. Deixam-nos a flutuar nos contatos, essas passagens – estamos perpetuamente nos desgarrando e ao mesmo tempo em abertura sensível, nesse cabal estar com os lugares. Mais uma paradoxal postura, pois nesse deslizar conseguimos estranhar o entorno, entornando todas as texturas que os olhos dos “de casa” já não enxergam mais, acessando-o radicalmente no instante da despedida – fugindo e encarnando simultaneamente. Estrangeiro afeto, desses que deflagramos ao partir, mas de potente cultivo a qualquer altura da estadia. Estranhar é ver o movimento mesmo em parada: o tempo que passa com cronologia mais lerda, enchido de muitos anos e fugacidades, e o espaço que se conjura com detalhes e presenças impensadas. Cada encontro mostra-se mais diverso e a miscelânea nos impregna de mais vida, enquanto nos esvai em desconcertos e rupturas. Tudo parece medir-se pela transposição. O tempo, que agora quebrado, está nos espaços. Também o espaço se fende e não se desenrola estático mais, temporalizado em decorrências em avanço. Múltiplos e misturados, tempo e espaço numa comunhão única que nós artificialmente recortamos em relógios e tarefas.

Cada momento que experienciamos possui um pedaço de movimento, até as pedras pulsam a seu tempo, nossas recordações são frames de cinema – densas e voláteis. Afável concomitância, essa de sermos em deslocamento, essa sanha da unidade mínima ser sempre a mutação pulsátil. A vizinhança renovada e matizada de memórias, os novos lugares a nos recombinar insuspeitadamente nos desabituando de nós mesmos. É por estar chegando que essas primeiras novidades se mostram tão heterogêneas e de encaixes inusitados. É por estar partindo que desabituamos as vivências e destapamos o movimento. Não há tempo de maturação ou apego firme dos territórios, não há cultivo que cerceie a debandada. Esse pulso perene transforma esse chão que nos sustenta em algo um pouco fluido, mesmo que estejamos pisando com a maior consistência que jamais acessamos. Quem planta ventos colhe tempestades, mas também acaba por criar a ânsia de seguir e tocar terras novas. Não se cria nada em completo movimento de expansão, mas muito menos se dobra outras potências firmando pilares inertes. São necessárias raízes aéreas, pés firmes e nus, para que não se fixe por completo ou se deslize tão somente. Então, é o espaço que transmuta ou o tempo que se desdobra? Tempo e espaço tornam-se experimentação simultânea que a mim se depuram em uma só palavra: distância. Por fim, como estar em meio a tantas distâncias?

Paisagens, rostos e toda uma transitoriedade de territórios, como diriam Deleuze e Guattari (2007). Somos um rosto, nossa subjetivação vai a apresentar certa feição no contato com o mundo, um rosto que, para nossos autores, não se identifica a um sujeito ou mesmo o define, mas que se dá por coordenadas e procedimentos territoriais. A fabricação de um rosto é um procedimento de desterritorialização de nosso organismo humanóide e uma sobrecodificação em marcas e redundâncias. Por sobre o substrato de um corpo se cria um intervalo que opera, à distância, uma estruturação que se quer fixa. Um rosto, em si, é uma distância, uma fixação que sobrevoa em separado e que nos organiza em repetições. Já partindo da idéia do processo de subjetivação que abole a noção de sujeito, o rosto ganha funcionamentos de produção coletiva e atualizações pontuais. Nossa subjetivação se inicia pelos olhos, buracos-negros iniciais que traçam as outras marcas. Não mais meus olhos carbônicos, mas atratores forjados, centros de demarcação de subjetivação por sobre o muro-branco dos discursos e cadeias de signos (DELEUZE e GUATTARI, 2007). Nossos autores não buscam desvendar um real rosto sob a sobrecodificação, ou mesmo destruir por completo as sintetizações de um rosto consistente e sim destrinchar o constante processo de produção que habitamos, pois “o rosto é uma superfície: traços, linhas, rugas do rosto, rosto comprido, quadrado, triangular; o rosto é um mapa” (DELEUZE e GUATTARI, 2007, p 35). Mas aqui nos vibra essa distância, essa trajetória de desterritorialização, essa reterritorialização e as tantas fugas que envolvem o processo de subjetivação. Uma distância, diferenciações, múltiplos distanciamentos. E ainda há com eles uma outra ligação forte com nossa questão-vivência: o rosto é correlato à paisagem, esta entendida como o espaço também em estado de desterritorialização e sobrecodificação em acoplamento com o rosto. Esta máquina abstrata de rostificação (DELEUZE e GUATTARI, 2007) vai a funcionar nas conexões, por entre os encontros, e nos dá estratos capturados e etiquetados que se estendem de nós aos espaços, uma certa fixação da desterritorialização absoluta dessa distância (DELEUZE e GUATTARI, 2007, p 35). Fixação por sobre descolamento, evocações repetitivas e costurada de signos, evolvendo rosto-paisagem a evitar movimentos bruscos demais. Uma busca de não vivenciar a distância, de não tocar esse intervalo não capturado em signos usuais? Nosso rosto, a paisagem que habitamos, o que se passa, ou ainda, como vibram estas distâncias? Há a distância, mas como temos habitado esse hiato?

Em nossas vivências contemporâneas de diluições ilusórias das fronteiras e de instantaneidade comunicacional, o que, enfim, significa distância? A lonjura, anteriormente cruel e decisiva, vem ganhando cada vez mais experiência de algo manejável, quase inexistente, superável ao ponto de perder importância. O distante pode ser visualizado, convivido em fusos simultâneos e extremos, plataformas de contato virtual, um infinito espaço negro adentrado por nossas sondas. O peso some, o contato possível e praticamente instantâneo nos expele da distância antiga, nos dando outras. Cartas caem no desuso pelo clique eletrônico e estamos na companhia constante de ausentes. Trajetos se evolam a pontos em mapas eletrônicos e corridas mais eficazes de translado. Distar ganha outras vivências, sem nostalgia de tempos de descobrimento por serem fantasias arrogantes ou mesmo espírito acuado. A distância é abolida de certa forma, preenchida agora com diversos procedimentos coletivos e circunscritos. Mesmo assim há o intervalo. Distamos outros, mas como se procede?

Tenho por sina nos últimos anos algo de andarilho. Não tanto desgarrado como poderíamos supor numa imagem romantizada do nômade. Algo mais próximo de sustentar uma vida rotineira até, mas que se aloca em locais distantes no globo entre si em simultâneo. Figura próxima das “vidas” e perfis virtuais nos quais temos estado imersos em nossos tempos, mas acesso aqui minha imersão como laboratório dos efeitos distantes e distais dessas concretudes. Viver em quatro cidades pelo menos – a ver: Rio de Janeiro–RJ, Niterói–RJ, Cachoeiro de Itapemirim–ES e Vitória–ES – é o que tenho percorrido nos últimos tempos. Anedota do contemporâneo, pois não fujo em nada da corrente de deslocamento e efemeridade das vivências subjetivas atuais, mas busco fazer desse deslocamento repetido uma dobra em meio a essa cooptação. A paradoxal distância se apresenta a mim ligeiramente mais fragilizada, e o importante aqui é o balanço, o movimento ao qual não consigo fugir desligando um aparelho eletrônico ou enviando uma mensagem curta de boa noite. A distância me abate ao mesmo tempo em que perde seu efeito em meus dias. Por estar em translado concreto, as virtuais presenças se tornam ainda mais efêmeras, ao passo que também mais necessárias. Por estar a deslocar meu corpo, os entornos me transpassam de modo mais pungente e acessos tantas cidades mais que os mais fixos não tocam. Meu rosto se estica, a paisagem caduca, transpassados pelas desterritorializações de uma máquina abstrata constante e também pelas jardas percorridas.

Tenho rosto, temos. Habito paisagens, estamos todos imersos. Mas com Deleuze e Guattari (2007) novamente busco contactar e habitar essa sobrecodificação onde ela se desfaz em distância, onde ela é trampolim consistente para que o rosto-paisagem não me fixe. “Rosto-bunker. A tal ponto que, se o homem tem um destino, esse será mais o de escapar ao rosto, desfazer o rosto e as rostificações, tornar-se imperceptível, (…)” (DELEUZE e GUATTARI, 2007, p 36) A nossos autores o processo de constituir um rosto e uma paisagem é inerente à vontade, e o desafio seria, mais do que negá-los, escapar. Reencontrar a distância, refundá-la, e, nela, as rotas de movimento em desenrolo. O que sobeja, enfim, é o movimento, esse nossa brecha de escape.

Tantos são os companheiros de minha vida que possuem certa similitude de caminho. Muitos são de cidades diferentes das que moram atualmente. Muitos trabalham longe de seus portos “natais”, muitos fazem dos amigos a família que não os rodeia fisicamente mais, muitos os que migram em expulsões e ostracismos das urbanidades contemporâneas, muitos os que vão a buscar florescimento em outras terras, muitos os que se deslocam o tempo todo, cada qual com sua singular estratégia de companhia e escape. Cada um de nós comunga com a distância criando sua maneira. Não abolir a distância em si, pois esta é necessária para singularização – se não há mais um intervalo estamos em identificação e parada completa –, mas a “passar a perna” nas diversas capturas de fixação ou indiferenciação. Onde aí criar territórios? Por sobre emissões de ondas a cruzar a atmosfera? Sendo somente o próprio corpo em repertórios curtos e controláveis? Temos somente a pele e o entorno como confirmação de realidade ou as telas de cristal líquido possuem sim alguma pregnância desgarrada? Ampliar é colecionar distâncias, diluir é movimentar-se em diversos modos, maquinar é experimentar em meio a criação. Aqui se inseriu o pensamento de como se fazem essas estratégias de lidar com o espaço-tempo. Todo rosto é uma política (DELEUZE e GUATTARI, 2007), e por tal é com estratégias de singularização que traçamos linhas de fuga, entrando diretamente numa estética de nossa movimentação, formatando nossas distâncias em um estrangeirismo veloz. Nomeio de sabotagem, pois plástica e maleável. Escapes a emperrar certa máquina sobrecodificadora ou atalhos outros a parar nossa atenção e sensibilidade. Tantos rostos, tantas paisagens. Como, então, sabotamos as distâncias?

Solidão… que nada. Sem cristalizar isolamento, pois de ranzinza ou mesmo sociabilidade fátua já basta a rotina. A vida é dobra sobre dobra, relação, mistura e coletividade. Nessa suspeita concreta e gelatinosa dos deslocamentos em minha vida, acabei por tecer um experimento. Fui a perguntar aos “amigos de caminho” partículas dessas suas estratégias singulares, para que esse ensaio não se tornasse somente Alvarenga-caminho, e sim, um certo “manual coletivo de como sabotar as distâncias”. Fiz a eles um pedido, de escreverem ou dizerem a mim qualquer coisa que os acessasse com relação a três simples palavras: Partida, Retorno e Distância. Simples de tamanho gramatical, mas cortantes quando os fiz o pedido. Ninguém recebeu as palavrinhas com habitual tranqüilidade. Eu sabia da intensidade delas, pois pra mim também não são simplórias, mas não imaginava tamanha movimentação em outrem.

Alguns respondiam em bate papos rápidos e claudicantes, outros pediam tempo para pensar, sinto que ainda estamos todos a digerir… Não devemos circunscrever tais efeitos, nunca esperaria deles fechamentos rápidos e noções claras de como lidar com esses substantivos. Mas também não cogitava toda a potência de deslocamento que o experimento causou em mim e neles. Um processo de devir não se traduz com facilidade, e se estamos a escapar de nossos rostos e paisagens como sugerem Deleuze e Guattari (2007), só em devir múltiplos, devir-animal, planta, devir-imperceptível, um devir-clandestino…

Listo as impressões e expressões desses nossos clandestinos1. Acesso para remarcar todas as distâncias possíveis, em dispersão e adensamento. Reescrevo para incorporar, para deixar vibrarem junto, para dar fôlego a todos nós:

Partida

Exortação, retorno a Ítaca, seguir o movimento dos olhos, ainda que eles estejam movidos pelo anseio. O sempre já, mas ainda não.

Partida, sempre me dá um medo danado partir, e eu lembro daquela música do Milton Nascimento que a Maria Rita canta ‘mande notícias do mundo de lá, diz quem fica’, é… Mas como eu tenho partido né, eu tava falando com o outro amigo esse final de semana do quanto que eu morro de medo de ir, mas eu sempre vou. De que eu encaro essas partidas sempre com muito medo, sempre muito ansiosa, mas chego lá – tem um certo sofrimento tem uma coisa meio enfadonha que você fala ‘Ah, será que era isso que eu queria? Será que era isso que eu queria escolher pra minha vida?’ – mas do quanto partir tem me tornado uma ‘canela de cachorro’, uma viajante, eu não grudo em lugar nenhum. (…) eu to sempre com vontade de partir, mas ao mesmo tempo to sempre com vontade de retornar, to sempre com vontade de ver as pessoas (…) o retorno é sempre importante.

É o que acontece. Certa como vento de outono que vem pra arrancar as folhas secas que a árvore soltou. Necessária. Faz com que novas folhas possam nascer adiante. Partir não é ir embora. As folhas não caem, elas apenas vão necessariamente de um lugar para outro. Partir é isso, ir de um lugar para outro. Às vezes somos folha de outono e às vezes somos a árvore. Não importa qual sejamos. Importa, sobretudo, que saibamos partir e também deixar partir aquilo que seca em nós e perde a liga. Quando o apego é maior, contemos com o vento de outono e seu laranja que aquece o céu e o peito. Façamo-nos outono quando chegar a estação.

Pra mim entre todas essas, pra mim é a que mais me toca é a partida, porque durante todo esse processo de decidir vir pra China, de decidir uma coisa nova, em nenhum momento eu tava pensando na minha chegada à China. Eu só tava pensando como é que eu iria lidar com o fato de partir. Por que a partida pra mim não é só um movimento meu de transação, de transição, de ir a de um lugar pro outro só, egoísta. A partida ela ta muito relacionada às pessoas que ficam, então a minha dor que eu me refiro á partida, é uma dor de deixar as pessoas e as coisas pra trás. Você deixa pra trás, e é um sentimento que dói no meu coração até hoje. (…) Também relaciono muito a partida com a questão da despedida. Eu odeio despedida, tenho um terror, tenho um pavor de despedida, porque tanto a partida quando a despedida estão ligadas a dar um “tchau”, alguma coisa vai sumir, vai desaparecer, vai deixar de existir. (…) ta relacionada a uma respiração muito forte, sabe aquela respiração do diafragma mesmo, que você respira bem fundo, respira muito e você, sabe, você desmonta… A partida só existe porque eu quis que ela existisse, eu colhi isso… Ela é muito legítima, se o sentimento é esse, eu respeito isso, eu vivo isso e da forma como ela deve ser encarada…

Mulher nordestina aprende a conjugar partir e chegar como pão e água. Aliás, também como uma espécie de cachaça.

Retorno

Quando eu morrer voltarei para buscar os instantes que não vivi junto ao mar” Sophia de Melo Breiner – poeta portuguesa do século XX.

Eu acho que essas três palavras, elas tão juntas o tempo, que a gente tenta sabotar a distância e sabotar a saudade, que a gente parte o tempo todo, então de alguma forma a gente reafirma essa questão de distância e de partida, mas que é sempre muito bom retornar.

É aquilo que parte com a gente. Quando é folha seca, é paixão triste, apego. Quando é saudade, é paixão meio alegre e meio triste, pois traz consigo a presença da ausência. Quando é serenidade, leveza, certeza no peito, é liberdade. Quando é por essência (e não por apego e fraqueza) inevitável, é destino.

Não tenho expectativa nenhuma. Quando eu parto, quando eu saio de um lugar eu realmente não tenho expectativa, eu simplesmente vou. Eu chego, eu faço as coisas, porque eu não tenho escolha, eu só tenho essa escolha: fazer. Na verdade eu só tenho uma escolha, que é chegar. (…) Eu só chego e vivo. (…) Eu acho bom, acho aventureiro, acho gostoso apesar de sentir um medinho as vezes no começo.

Distância

Toda distância, efetivamente, é demarcada de dentro pra fora, na capacidade de contração e expansão dos alvéolos pulmonares.

Dis-tanto, né, a gente que mora num lugar, que forma em outro, que vai trabalhar em outro, que tem amor num lugar e que tem amigo em outro, e de quanto que essa distância impossibilita uma convivência um pouco mais próxima, mas que, no nosso caso de amigos, como a distância não nos impossibilitou de nada, né, a gente só não consegue tomar cerveja junto, mas a gente se fala todos os dias e você deve ser a pessoa mais próxima de mim nos últimos seis anos que é desde quanto você mora no Rio de Janeiro-Niterói. Essa coisa física, de distância, eu sempre penso em escala, é, ta tudo tão longe , mas dependendo de onde você olhar tá tudo tão perto. E eu que não gosto de avião, as distâncias são um pouco maiores, mas é só montar no carro e ir pra qualquer lugar.

É o que diz o quanto se está perto ou longe; ou até mesmo faz com que nos percamos em meio a isso. É como o movimento do mar… Como a onda que parece próxima e demora ou como a onde que parece distante e nos engole. Distância desconhece exatidão e, no entanto, está sempre posta. É o “encontro das águas”.

No começo, quando eu cheguei aqui em 2013, a distância pesada demais, a distância pesava muito. Pesou no momento que eu entrei no avião em São Paulo pra vir pra cá… Não dormi o vôo inteiro… Eu lembro que a cada 30 minuto passava na minha cabeça: eu to a 30 minutos mais longe da minha zona de conforto…Eu to muito longe, muito muito longe… Hoje em dia, depois de quase 5 anos, eu te digo que eu não penso mais nisso não, eu não acho que eu esteja tão longe, não se por causa das redes sociais (…) não sei se seja uma questão de poder me comunicar (…) mas eu me sinto muito mais segura agora, a questão da distância ela não é uma questão mais, já foi uma questão.

De lonjuras e cheganças nos fazemos, negociando com a distância, com a poesia do deslocamento.

Um farol múltiplo. Sinais, marcações, suspiros e afogueamentos. “Corpo canteiro de saudade. Banzo e bom augúrio do que se anuncia e não se sabe.” Disse ainda uma das amigas – frase solta, aglutinante e de talho preciso. Essas falas não pertencem a ninguém, nos são em dispersão, daí a escolha de não nomeá-las em autoria. Coletivas, dispersas, clandestinas todas elas. Fogem, marcam e se esvaem em potência nova.

Nossos comparsas, Deleuze e Guattari (2007), já haviam afirmado que só se escapa da rostidade, só se ativa um processo de devir-clandestino, com todas as armas da arte. Cores, melodias, luzes angulosas, afetos depurados, coreografias inusitadas, palavras que correm conosco. Sem ser a aventura do amador ou do esteta (DELEUZE e GUATTARI, 2007), é o constante desafio de se embrenhar em nossos processos e manejar as sabotagens que nos dispersem, que nos ampliem singulares. Como um programa da esquizo-análise, sendo essa a tarefa do vivo, saber-nos de nossos buracos-negros subjetivantes e nossos muros brancos de significação (DELEUZE e GUATTARI, 2007). Não poderia ir a “interpretar” as falas dos confabuladores, seria como encapsular os devires tantos que elas desfraldam. Prefiro os cortes, a pungência de cada fragmento e os efeitos dinâmicos de cada processo. As velocidades são múltiplas, mas isso não impede que as influências e misturas ocorram, uma linha de devir mais lenta pode se acoplar a uma mais veloz (DELEUZE e GUATTARI, 2007), o que buscamos são os deslocamentos dessas distâncias intervalares. Saber em movimento, com o corpo, com o entorno, em clandestinidade rasteira e afirmativa.

Outono. Ítaca. Lá. Física. Folhas. Cachaça. Coração. Amigos. Necessário. Junto. Tchau. Exatidão. Desconhecimento. Mar. Movimento. Instantes. Liberdade. Pão e água. Serenidade. Olhos. Medo. Apego. Fora. Questão. Lonjuras e cheganças. Pavor. Cerveja. Encontro das águas. Ficam. Vivo. Deslocamento. Desaparecer. Engole. Demarca. Próximo. Perto. Paixão. Peito. Importantes. Egoísta. Anseio. Colhi. Lembro. Morro. Muito. Vontade. Árvore. Fala. Trabalhar. Comunicar. Amor. Destino. Pesava. Expectativa nenhuma. Queria. Viajante. Diafragma. Já. Tudo. Convivência. Contração. Cabeça. Negociando. Leveza. Segura. Vivi. Pra trás. Demarcada. Tempo. Gente. Triste. Zona de conforto. Expansão. Estação. Sobretudo. Alegre. Exortação. Fazer. Partir. Lugar. Espécie. Chegar. Quando. Bom. Certeza. Demarcada. Dentro. Diz-tanto. Tomar. Posta. Poesia.

Ao preço de um devir-animal, de um devir-flor ou rochedo, e, mais ainda, de um estranho devir-imperceptível, de um devir-duro que não é senão o mesmo que amar.” (…) Devir-clandestino, fazer rizoma por toda a parte, para a maravilha de uma vida não humana a ser criada. Rosto meu amor, mas enfim tornado cabeça pesquisadora… Ano zen, ano ômega, ano Ω… (Deleuze e Guattari, 2007, p 57 e 61)

Saudades. Alvéolos pulmonares.

Tantos instrumentos para devires reais, linhas pictóricas, musicais, animais, vegetais… Fugir na arte, desfazer o rosto, romper a paisagem… Imperceptíveis… linhas de amor… (DELEUEZE e GUATTARI, 2007). Nossas sabotagens se apresentam, nos questionam que rostos são esses que configuramos a mirar estas mesmas paisagens longínquas. Estamos a sabotar: as distâncias que a sobrecodificação nos envolve, nossas rugas e expressões reutilizáveis, horizontes que não devem mais ter ilusão mais além, na ativação de devires reais, a ilusória fronteira dos processos a nos dar à distância heterogênea que o clandestino habita em sabotagem e peregrinação.

Uma dispersão. As clandestinidades permanecem e seguimos a maquinar outros modos de viver fazendo um transbordo vivaz. Como partir outra vez? Chegar e sair somente são orientações para quem está estático. Como se retorna então? Presentes, sorrisos, calor de abraço, um ponto de parada e uma nova carreira. O cultivo do movimento é ativação estética. Usamos os instrumentos à mão, nossa carne em presença, os caminhos em traçado amplo, e deve-se seguir.

Vibra ainda, sentimos que o retorno é partida orbital, que as distâncias estão ao alcance dos dedos. A volta de novo e de novo que se mostra maior que qualquer entrada ou saída. Circunvolução, revolução imperceptível, cósmica, que daqui a pouco revolverá a por tudo em movimento mais uma vez…

Pelo ar em transmutação.

1 As falas são listadas no formato direto e sem nomeação com uma intenção: não identificar seus autores, ter a liberdade de colocar diretamente a forma como falaram e não terem pretensão de transcrição. Efeito interessante, pois as palavras foram absorvidas e reverberadas pelos amigos de diferentes formas, misturando significados e interpretações diferentes – como exemplo de tomarem a palavra retorno pela palavra chegada. Dei a eles autonomia, a nós importa mais as marcações singulares do que recolher entrevistas documentais e informações precisas para núcleos de significado.

Os relatos são de comparsas com traçados diversos: pontilhados em diversas cidades do ES – Vitória, Nova Venécia, Piúma, dentre outras; São Paulo – São Paulo, Assis; Rio de Janeiro – diversas localidades; Paraíba; Bahia; Rio Grande do Sul; Montreal no Canadá; Chongqing na China; além de todos os outros percursos que são indetectáveis para mim. Vários itinerários, uma polifonia de deambulações.

REFERÊNCIAS: Deleuze e Guattari, Mil PLatôs – capitalismo e esquizofrenia, volume 3. Ano zero – rostidade. São Paulo: Ed 34, 2007.