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Supernova


À Macabéa, seu imenso pulso cósmico e cru.

Tomar, enfim, o caminho. Não há escolhas para o tempo, a não ser transcorrer e cadenciar-se com as arestas de cada instantâneo na infinitude de poeira e sangue dentro deste mundo. Ocorre, pesado de tonelada no mesmo momento em inimagináveis milímetros e abissais extensões, o segundo. Qualquer caminho é caminho para ele. E fico estatelada com a pungência que é continuar a ter as células e se transformar em duas, três, tantas. Continuar a ter o ar me invadindo pelos buracos do nariz. A constância circular de minhas veias e a aspereza quente de tudo que me rodeia mesmo sem me tocar. Sua mão, a lua, enfim, minha ira sedenta de futuro e o pé manco porque é chão demais. Sempre viva e com o tempo a pressionar minha cabeça sem dor alguma, simplesmente estou. Nem busco sentido, mas sentida dou o avante, porque mesmo pra trás não tem volta. O que importa não são meus seios de mulher e muito menos meu ventre rente. Minha pele recobre isso por inércia, não preciso me preocupar. São meus olhos enfim, moço. Meus olhos que simples castanho-escuros como qualquer íris ordinária, esses que desde criança espero a terra abrir a boca para comê-los. Eles que afiam minha lâmina. Que, de longe sempre, veem tudo. Tudo. Maiores do que a cidade inteira, procuram. Pouco importa o que está na mira, são obscenos. Enxergo desde muito pequena e isso, mais do que dom ou só capricho, me escraviza. Jamais imaginaria o que se passou diante destas bolas pregadas na minha cara sem linhas. E assim, minha pequenez dimensionável por réguas bem aparadas tem o mundo todo participando, parasita.

Eu vi, vejo. É o ar que brilha sob a roda de um carro mais veloz plena de pó fino e vil. Uma nuvem que se rasga sobre a água comprida da beira do mar. As rugas de minha mão acentuadas pelo batom que limpo da boca mal utilizada no fim do dia. A folha molhada de papel se desfazendo numa poça. Incomensuráveis pelos a cobrir cabeças descobertas sob um sol de rachar. Folhas que se ajuntam numa pequena oca frágil e vacilante no canto do meio-fio. A fuligem negra que aveluda tudo com um toque de imundice e conforto irremediável. E a ponte de minha córnea a piscar maravilhada com nada.
O que me custa, afinal? Há custo, sim, tenho certeza. O que não custa não existe no planeta de verdade. Meu calor, minha alma, minha cidade, meu mar, meus sapatos baixos, suas calças e as penas da pomba custam, caro. Mas pouco me importa, não escolho nada e fico olhando. Não me imagine pedra plena de dureza. Queima-me. Quase odeio. Vejo saltarem suas veias em cada impulso comum de coração. Tua saliva promiscuamente sendo produzida para um cuspe na sarjeta. Os brotos de suor em suas sobrancelhas e seus olhos amarelados e irrequietos. Tenho vontades de desfazer o fio inteiro de uma só vez. Descascar cada camada do que se presentifica com minhas próprias unhas. Uma declaração de completo ímpeto sobre o que me realiza. Pedi opinião? Não. Somente me faz arrepiar de pungência cada vez que continuo teimosamente a ocupar ar. Quieta, explodo as fronteiras visíveis e não perco vontade alguma de continuar. É o dia uma vez mais e minhas tripas retorcendo diante de mim e de mais ninguém. A impressão é que somos calos, cicatrizes fendidas eternamente entre o que amargamos ter sido e a inatividade de ser ainda mais pra frente. Faça-me feliz e me esqueço, até me lembrar.

Uma descarga elétrica que me eriça os pelos da nuca e trinca os dentes sob minha flácida língua adormecida. Faísca. Não se trata de pensar em palavras exatamente, palavra alguma. Não crio mundo interior, não posso, não sou capaz. Sinto meus ossos feitos do avesso, minha carne colada em cada parede que se ergue, meu cérebro funcionando nos circuitos de rádio e televisão com volume bem alto, meus pés sob os cascos secos de todo animal, meus cabelos são raízes, e meu sexo nutre todas as torneiras. Quero minha parte só, que é tudo, e assim meu corpo branco não suporta. Atravessada involuntariamente. Sinto amor em cada beijo trocado por lábios de outrem. Sinto a ira de imemoriais exércitos sedentos. Brota-me uma lágrima para cada soluço perdido pelas esquinas. O calor que me dá no peito em cada abraço dos moleques felizes. Só não sei se tudo me pertence ou se somente interferi no que não devia. Talvez, pois. O tudo é que me possui.
Não quero a mágica de ter uma astronômica paixão. Minha magia já existe, e me cansa até. É só o primeiro passo que me aterroriza. Esse que já se faz sem minha permissão, que já foi dado e me pôs aqui de novo olhando meu reflexo inócuo e opaco na vitrine da loja que paramos há minutos. E as jabuticabas de meus olhos assistindo à rua atrás de nós passar ao contrário. E você aí, e eu aqui e um silêncio no meio que só falta ter reflexo também.
Caio no torpor da espera. Minha vida sempre foi espera. O espetáculo particular que meus olhos mais velozes que meu pensamento me fizeram público. Só que nunca tenho tempo nem de bater palmas, recomeça. Lembro do tapa que mamãe me dera no rosto certa vez e sem perceber já chorava muda e inerte. A santinha que chora. Meus vestidos de pequenas estampas que fico admirando, vislumbrando cada florzinha que explode na ponta duma linha corrida coalhada de outras flores iguais. A água pingando da bica devagar e gorda em cada gota que me divertia infinitamente nas tardes de adolescente. Lembro das bocas falantes e eu só conseguindo prestar atenção ao balé dos movimentos da língua, o brilho dos dentes amarelos dos outros e os pingos de saliva que saltavam esporadicamente; minha cara vidrada sem compreender palavra que havia sido dita. Não posso mais, feneço de felicidade fácil com qualquer coisa e isso me encerra em tudo, menos em mim mesma.
É como se com um giz eu finalmente riscasse meu contorno. Fazendo voltas, dando-me dedos nas mãos verdadeiras por fim. Uma caneta mais forte me dando, um a um, fios de cabelo ondulado. Imprimir digitais nos dedos do pé, para uma pegada com meu peso e minha altura misteriosamente precisos na areia. E em minhas páginas em branco me dar nome, endereço, idade, amor, limite, finitude.
Uma gota salgada escorre de meu nariz e me chama. Meus olhos não pararam de trabalhar, mas, como já disse, sem eu perceber. Você coloca a mão no bolso apertado, São suas veias sobre o fino braço. É sua pele firme e russa com a cor mais bonita que já vi. Seus dedos voltando do fundo com o maço de cigarros amassado. Sua mão que retorna e traz a roxa caixa de fósforos linda como um presente. O risco brilhante, a fumaça, a ponta acesa, mais fumaça, o balanço e o pequeno palito cai no chão como um corpinho de boneca. Seus lábios mais grossos que os meus beijando o filtro branco. E a dor que me dá no peito, pela fumaça, pelo espetáculo.
Não preciso, me basto sozinha. Mas quero, com toda a força do que já percebi, ter finalmente a fraqueza de ser gente, e só. Não é felicidade a palavra, pois essa eu já conheço. É uma que talvez não exista, não que eu saiba. Preciso encontrar a palavra que procuro por querer. Escrava de minha plenitude, eu preciso finalmente ser de verdade, ser minha para poder me dar aos outros, a tudo.
Uma espuma parece agitar minha garganta. É minha deixa, agora sou eu quem vai morrer e não mais o segundo que passa. Perdendo o foco num só instante, abro a boca de leve e deixo sair minha sentença que não sei se é fatal, mas é a que preciso.


─ Eu gosto tanto de parafuso e prego, e o senhor?

Sinto-me arrebatada. Pronto, cá estou eu de verdade.


Ciborgues, Replicants e andróides ou O manual de como construir humanos

Humanóide, do sentido de ter forma ou característica humana, mas como se a casca-invólucro fosse deveras cópia, mesmo que aperfeiçoada e desbastada da variabilidade corpórea, falsidade hominídea. Humanóide também do que parece ou age como humano, nessa de mimetizar, mesmo que parcialmente, especificidades que só o humano possui. Onde está o ponto ótimo de se dizer: humano? O que nossa carne possui como traço humanóide?

De genes e filos zoológicos estamos abastados, mas pensar aqui a noção de humano, de carne humana, diz de outras definições por vezes embaçadas. Organismo de partes anatomo-fisiologicamente encontradas no contemporâneo como Homo Sapiens Sapiens, repetidos em variação e constância numa estreita cadeia de proteínas, minerais e muita água – humano elemento. Humano aquele que deriva da acumulação meramente instintiva ou mutacional para construir sob seu intelecto e relação grupal algo chamado de cultura, receptáculo de seus acúmulos seculares em hibridação muito mais veloz que a celular e muito mais efetivo em estoque – humano símbolo. Dessa luz que nos ilumina o avantajado cérebro vem as profecias de outros planos que nos escolhem como ferramenta de conexão, numa metafísica construída entorno de um homem que, por toque divinal, lê e usa o mundo a seu dispor – humano deus. Diz-se de direitos humanos, algo que definiria por meio de convenções “elementares de sobrevivência” algo de uma raça animal que se abriga sobre o nome de “humana”, apontando aqui atos e usos da vida humana que se afastam a todo tempo dessas premissas de preservação e salvaguarda racial – humano indivíduo. Outro ponto seria o tão falado adjetivo de humanizar, utilizado de maneira muito parcial e em larga escala em nossos tempos atuais a apontar atitudes, comportamentos, ambientes e regulações coletivas que apontam para uma “suavização” ou certa proteção do humano ainda em nós – humano frágil. Tanto mais a palavra humanizar também se desloca para afetos e comportamentos que o real pode possuir e que se aproximam de certa manifestação humana de sensibilidade, inteligência ou arbítrio (desde nossos cachorros adestrados a forças da natureza divinizadas em inteligência e indulgência) – humano sábio e/ou sensível. Sem questionar nenhum segundo é com nossos rostos, números de registro geral, aquisições de propriedade e nome próprio que seguimos humanos sem atenção alguma nesse ser – humano rebanho. Dum antropocentrismo tiramos nossas balizas lingüísticas, nossas coordenadas de habitação e nossa imaginária e bem vincada linha de divisão entre humano e resto.

Mas o que define algo de humano em cada corpo elementar-simbólico-divino-individual-frágil-sensível-sábio-arrebanhado? Qual limite de existência nos faz adquirir o status de humanos que há tantos de nossa estirpe parece ser negado?

Índios, loucos, trans, mulheres, bichos, inteligências artificiais, tudo sendo humano sem o ser. Um nome de família mais humanizado que um menino do tráfico. Discursos de dignidade na boca de humanos que tem como objetivo a seleção de nós são escolhidos em meio aos “sujos de índole”. Uma indústria de metal manipulado tendo quase um coração forjado e marketings afetuosos erguida sobre uma floresta viva, mas que é deveras selvagem para ser humana. Uma desintegração é o que aparenta. Talvez uma agonística que desvelam relações de poder e seus discursos íntimos.

Mas por aqui uso os ainda metafóricos ciborgues como pedra de torção. Máquinas habitantes dos discursos da ficção científicas, os ciborgues, robôs de diversas formas e funcionamentos, são uma plataforma-espelho onde o humano em nós se confronta com seu próprio reflexo. Sejam robôs completos, inteligências artificiais ou mesmo combinações multifacetadas entre o orgânico e o tecnológico, tais humanóides encarnam essa experimentação, refratando a questão humana ao infinito. E esse reflexo é parco, de tão real e sublime de tão questionador.

Há uma ininteligibilidade na natureza, uma perdição de nossa origem que desestabiliza a raça numa constante tentativa de se apartar em algum momento da arbitrariedade dessa, ou pelo menos remontar rastros perdidos do que nos formou. Humano que manipula do mundo e do tempo refazendo sempre uma imagem sua ou triangulando caminhos. Esse que muitas vezes nega sua organicidade busca no criar do ainda mais humano uma experimentação. Andróides são humanos filhos de uma humanidade, em experimentações especializadas de nossos ideais e aspirações. O que se perde no caminho? Imagem do humano, melhora planejada de aspectos funcionais, esses seres artificiais perdem a sujeira natural e a miscelânea do mundo, indo para um aperfeiçoamento abstrato sem base vital para tal. Humano bizarro, repuxado em partes específicas, humanóide disforme, a-natural. O que nos torna humanos é ser natureza suja e imemorial, violência rude de ter célula, mas os experimentos tocam algo indomável. Num disparate da fabricação o mecano-humanos refletem inflam e racham nossas perfeições, vivificando para nós que só uma célula não garante a solução de nossa pergunta.

Blade Runner (Ridley Scott, 1982), Ghost in the Shell (Mamoru Oshii, 1995) e 2046 (Wong Kar-Wai 2006). Três filmes que tem a questão ciborgue como ponto de exploração. Três entradas distintas, usos e materiais que incorporam esse translado de limites. Fronteiras diluídas, desafios presentificados e pulsantes, essas obras abordam a figura do andróide em suas diversas funções – uma futurística ação bélica de revolta dos andróides escravos, a ação policial e a caçada por dispositivos especializados de inteligências artificiais, o amor e presença do outro – fazendo da vivência concreta tão natural a todos nós uma questão complexa: o que faz um humano, humano? Como se constrói um humano?

*

1Replicants – os que devem replicar, repetir, mimetizar e não mais que isso. Assim são chamados os andróides de Blade Runner, 1982, onde, num futuro não muito distante eles são produzidos como corpos de trabalho para colônias interplanetárias e tantos outros usos. Durante a trama do filme alguns replicants são caçados pelos chamados Blade runners, clandestinos na Terra após revoltas nas colônias extraterrestres. “Tyrel: Comércio é nosso objetivo aqui na Tyrel. Mais humano que o humano é nosso modo.” (Blade Runner, 1982, 21’46”, tradução livre) – enuncia efusivamente o presidente da corporação produtora dos andróides ao conversar com Deckart, personagem principal contratado para matar os replicants revoltosos. Algo foge do planejado e a extinção das máquinas defeituosas é necessário para manter o sistema. Toda a cidade, uma Los Angeles distópica, mostra-se um grande caos de sujeira, tecnologia, consumo e entrecruzamentos de miséria e luxo, e isso deve permanecer assim por meio do controle e da vigilância constante.

Diversos modelos, um negócio de trabalhadores braçais a companhia distrativas, mas sempre um negócio. “Deckard: Replicants são como qualquer outra máquina. Ou são um benefício ou um risco. Se forem um benefício não é meu problema.” (Blade Runner, 1982, 17’27”, tradução livre) como repete Deckard, ao demonstrar seu teste de averiguação de replicants.

A presença dos androides é baseada na fuga, no invizibilização de suas diferenças em meio aos humanos para evitar em extinção em massa. Inicialmente meras máquinas repetidoras, agora caçados por se tornarem humanos demais. Salto esse de sua inteligência artificial que além de somente seguir procedimentos pré-programados criaram novas conexões e atingiram a mais vital das dádivas: o afeto. Baseados em memórias implantadas ou programações bem estabelecidas os replicants tornam-se problema quando dobram sua repetição desenvolvendo uma autonomia que a máquinas jamais seria concedido. Afeto esse que é a base do teste que detecta andróides, sendo que se espera deles respostas emocionais inconclusas ou inexistentes. Mas alguns começam a florescer em afetos e isso embaralha os códigos. Insuportável ter essa dádiva compartilhada com máquinas, impossível suportar essa alforria que denuncia a pobreza do humano orgânico. Intolerável audácia esse acesso à transformação.

Afeto e autonomia, aspectos tão profundamente humanos tornados movimentações que fazem da existência algo fora do controle eletrônico. Deckart está a todo tempo na perseguição dos robôs amotinados por caminhos diversos que questionam sua própria missão. Suas investigações para “aposentar” (eufemismo para assassinar utilizado no filme) os andróides o levam em encontros violentos e perseguições pela cidade, mas também é uma andróide que faz experienciar outras conexões: a paixão. Com Rachel, replicant dócil e programada para ser praticamente humana, acaba por desenvolver uma relação amorosa – como amar algo que aprendeu o afeto baseado em memórias implantadas falsamente? O que difere as respostas de placas e fios eletrônicos do coração de músculo e neurônios?

Todos os andróides são mortos por Deckart e o encontro final com o líder do bando marca a torção de toda a nossa questão. Numa das cenas mais marcantes do filme, Deckart luta com Batty, o líder, e acaba dependurado em uma viga de metal pronto a cair “Batty: Uma experiência viver com medo, não é? Isso é o que é ser um escravo. Eu vi coisas que as pessoas não iriam acreditar.” (Blade Runner, 1982, 1: 40’ 56, tradução livre). Após isso estranhamente Batty resgata Deckart da queda, o coloca no telhado enquanto chove bastante. Aproxima-se com uma pomba em uma das mãos e completa sua fala: “Naves de ataque em chamas fora por sobre o ombro de Orion. Eu assisti C-beans brilharem no escuro perto do portão Tannhauser. Todos esses momentos se perderão no tempo… como lágrimas na chuva… Hora de morrer.” (Blade Runner, 1982, 1:43’ 26, tradução livre). A batalha se resolve com a morte de Batty, mas não sem antes deixar estranhas conexões. A morte é um medo tão original do humano que ele se compadece de Deckart, comungando com ele uma mesma existência. O que faz dum robô algo além? Memórias? Emoções? Inteligência? Liberdade? De todas as camadas da cidade caótica e sofisticada (ALLIEZ, 1988), com seus estratos de vigilância, invisibilidades e deslizes, sobeja ainda a existência como errância. A repetição que se quebra na vivência titânica dos andróides destrói toda a perseguição, injetando o humano com sua pungência de que existir talvez seja pra além de matéria orgânica ou nascimento biológico.

2 – O chamado que impele Major Motoko Kasunagi, personagem central de Ghost in the Sheel, 1995, de se aprofundar e conectar com o mundo é não codificável, escapa. Na animação passada no ano 2029, temos como personagem principal Motoko, uma agente biônica da polícia especial de um departamento (divisão política do mundo no filme, algo como grandes impérios sempre em conflito) futurista. Biônica no sentido de ser uma simbiose entre o biológico e o eletrônico, sendo que Major possui um corpo robótico e melhorado em diversos sentido, resguardando alguns tecidos e partes de um corpo humano “original”. Cito original por ser esta a questão crucial da personagem, saber se teve uma vida humana pregressa, se foi completamente fabricada ou se é algo ainda por decifrar. Há a distinção entre o ghost (algo como o fantasma ou alma) e shell (concha, casca) que os personagens se referem todo o tempo como sendo vivências de dimensões distintas. A primeira refere-se a uma vivência individual do nível da consciência ou espírito que tem valor maior e certa singularidade de cada ser, e a outra a vivência corporal e concreta que, pelo contexto de tecnologia, pode ser refeita, manipulada ou substituída. Em uma passagem, um dos agentes parceiros de Major indica que, mesmo com tal distinção, não se tratam de dimensões somente biônicas ou estáveis quando diz: “Battú: Experiências virtuais, sonhos… Todo dado que existe são ao mesmo tempo realidade e fantasia. O que quer que seja isso, os dados que uma pessoa recolhe em tempo de vida é minúsculo pedaço comparado ao todo.” (Ghost in the Shell, 1995, 27’40”, tradução livre) Os limites de tais dimensões se confunde, pondo tudo em processo de questionamento e fabricação. O reflexo, elementos mais importantes do filme em cenas e falas diversas, aparece aqui como elemento de identificação e falsidade, imergindo uma faceta na outra, indicando que a criação não respeita fronteiras nem lida com materiais puros – ela invade e vitaliza de circuitos computadorizados à células cerebrais.

Há um alvo a ser perseguido e eliminado no enredo, o chamado Puppet Master (Mestre de marionetes), entidade que habita a rede interligada de informações. Inicialmente um programa de espionagem que entra em colapso e se autonomiza. Ele se identifica como uma produção inteligente da imensa rede de conexão computadorizada, esta mesma que ele busca transladar da existência virtual para outro nível de existência. Suas falas trazem quebras importantes ao se pensar a vida, quando diz ao argumentar com um dos chefes do departamento que o mantinha em prisão:

Puppet Master: Também pode-se argumentar que o DNA é nada mais do que um programa concebido para preservar a si mesmo. A vida tornou-se mais complexa no esmagador mar de informações. E a vida, quando organizada em espécies, depende de genes para ser seu sistema de memória. Assim, o homem é um indivíduo apenas por causa de sua memória intangível… e memória não pode ser definida, mas define a humanidade. O advento dos computadores, e a subsequente acumulação de dados incalculáveis deu origem a um novo sistema de memória e pensamento paralelo ao seu. A humanidade tem subestimado as consequências da informatização.

(…)

Nakamura: Absurdo! Não há nenhuma prova de que você é uma vivente, pensante forma de vida!

Puppet Master: E você pode me oferecer a prova da sua existência? Como você pode, quando nem a ciência moderna nem a filosofia podem explicar o que é a vida? (Ghost in the Shell, 1995, 48’27”, tradução livre)

Em um enredo onde a falsidade de memórias, ideais e a existência concreta são questionadas, o filme explora desde uma cidade moderna e decrépita a conexões expansivas de consciência que questionam a realidade em seu todo. Alçando mergulhos profundos em questões filosóficas insolúveis, a animação de extrema ação e perseguições bélicas se monta por sobre os caminhos de questionamento da personagem principal. O estilo cyber-punk mesclado com amplas e vagarosas reflexões tecem um estranho balanço entre a decadência e o renascimento, tendo corpos em explosão e a experiência da conectividade infinita como subprodutos desse processo. Major Motoko pulsa entre a inexistência de qualquer afeto para o questionamento completo de sua identidade. Ataca e reflete a todo instante, escorrendo pelas frestas de estabilidades tão firmes quanto um esqueleto de titânio e a árvore de vida evolutiva. Brechas estas que indicam outro salto, outra expansão. Em uma cena marcante do anime Motoko está realizando um mergulho profundo no mar em seu dia de folga, atitude essa questionada por seu companheiro Battú também policial biônico, que pergunta para quê uma ciborgue mergulha em profundidade com um corpo que não flutua, o que ela busca, o que sente. No que Motoko responde com frases curtas e secas sobre tocar sentimentos como perdição, ansiedade, solidão, mas também certa esperança. Um lampejo de que ao emergir possa ser outra pessoa. Ela mesma lança cruciais reflexões nesse momento:

Há inúmeros ingredientes que compõem o corpo e a mente humanos, como todos os componentes que produzem a mim como um indivíduo com a minha própria personalidade. Claro que eu tenho um rosto e uma voz para me distinguir dos outros, mas meus pensamentos e memórias são exclusivos apenas para mim, e eu carrego um sentimento de destino próprio. Cada uma dessas coisas são apenas uma pequena parte disso. Eu coleto informações para usar de meu próprio jeito. Tudo isso se combina para criar uma mistura que forma a mim e dá suporte a minha consciência. Sinto-me confinada, somente livre para expandir-me dentro de limites. (Ghost in the Shell, 1995, 31’43”, tradução livre)

Seu cérebro orgânico entrelaçado com um corpo ciborgue não é prisão, são nós de conexão, visto que sua maior rebeldia é conseguir fazer da base bio-mecânica somente estação de transição, forma de expressão de processos inteligentes virtuais e concretos. Esse descontrole vital de uma rede virtual é impalpável à existência mundana, que vê amolecer sua base firme do atual e perder a rédea firme do fluxo informativo. A combinação é o trunfo para algo além do real sem seu aniquilamento, mas numa expansão incontrolável. A perseguição de Major Motoko e seu encontro com o Puppet Master concluem-se numa fusão entre sua existência e a dele, num convite de tornarem-se um só ser em outro nível de existência que não a parca realidade. A proposta de fusão surge para poderem realizar certa “reprodução” ao deixar que o novo ser em combinação deles dois traga outra existência possível, buscando a variabilidade que a vida demonstra frente aos procedimentos de cópia que os circuitos utilizam.

Puppet Master: Refiro-me a mim mesmo como uma forma de vida inteligente, porque eu sou senciente e capaz de reconhecer minha própria existência, mas no meu estado atual ainda estou incompleto. Faltam-me os processos mais básicos inerentes a todos os organismos vivos: reproduzir-se e morrer.

Major Motoko Kusanagi: Mas você pode copiar a si mesmo.

Puppet Master: Uma cópia é apenas uma imagem idêntica. Existe a possibilidade de que um único vírus poderia destruir todo um conjunto de sistemas e cópias não dão origem a variedade e originalidade. A vida se perpetua através da diversidade e isso inclui a capacidade de sacrificar-se quando necessário. Células repetir o processo de degeneração e regeneração até que um dia eles morrem, obliterando todo um conjunto de memória e informações. Só permanecem genes. Por que repetir continuamente este ciclo? Simplesmente para sobreviver, evitando os pontos fracos de um sistema imutável.

(…)

Motoko: Outra coisa. O que garante que eu vou continuar sendo “eu”?

Puppet Master: Nada. Mas ser humano é continuamente mudar. Seu desejo de permanecer como está é o que, em última análise, te limita. (Ghost in the Shell, 1995, 1:09’35” e 1:12’03”, tradução livre)

O que te torna real? Qual o limite? O que nos fica são os abalos, uma vontade de existência e uma imensa combinatória que nos apequena, mas nos dando multifaces em um espelho luxuoso.

3 – Mas é em 2046, filme do coreano Wong Kar-wai de 2006, que o limite dos ciborgues e do humano se dissolvem em comunhão. O filme ambientado em uma atmosfera dos anos finais de 1960 em Hong-Kong, traz como personagem principal um escritor Chon Mo Wan desiludido com uma antiga história de amor, e que por diversos descaminhos e encontros com amantes e passantes vai a explorar qual a matéria do amor e da vida. Está escrevendo uma história, uma história dentro da narrativa do filme se passa no ano de 2046. A sequência futurista é ambientada em um trem tecnológico que leva as pessoas um lugar chamado 2046, onde vão em busca de alguma lembrança perdida. Muitos vão a 2046 depositar segredos para se livrarem deles, mas nunca niguém havia retornado de lá, somente o escritor-narrador da história. “Chow Mo Wan: Sempre que alguém pergunta por que eu saí de 2046, eu sempre lhe dou alguma resposta vaga. Era mais fácil.” (2046, 2006, 2’46”, tradução livre). Baseado em uma história oriental – a de que quando se possui um segredo inconfessável pode-se procurar uma árvore, cavar um buraco em seu tronco, contar a esse buraco seu segredo e depois fechar-lo com argila para não se descoberto por ninguém –, chega-se a esse local em um trem de longa viagem servido por andróides. Ali se passa toda a sequência no futuro, não há paradas, estão sempre em deslocamento e certa desolação. Há sempre o entrecruzamento entre a vida real do escritor e suas incursões no enredo de seu livro, numa mistura de resgate de memórias perdidas, novas experiências e uma busca incessante na decifração das relações humanas. Por que partimos? A que retornamos ou o que nos fixa aqui? “Chow Mo Wan: Amor é sempre questão de timing. Não é bom encontrar a pessoa certa muito cedo ou tarde demais. Se eu tivesse vivido em outro tempo ou lugar … minha história poderia ter tido um final muito diferente.” (2046, 2006, 1:36’29”, tradução livre).

Serviçais de inicio, as andróides – todas mulheres – estão para realizar qualquer pedido dos viajantes, mas Chow Mo Wan, que viaja no trem acaba por se envolver. Sozinho durante todo o percurso, ele tem como companhia uma andróide. E por ela se apaixona. Ele, desolado por um amor perdido, encontra nela outra chance. Perdeu o amor por não saber se era correspondido e hesitar se declarar, mas decide declarar-se a andróide. Ela também o ama, mas por um defeito de programação que retardava seu tempo de reação, não consegue confessar seu afeto tendo um delay, certo atraso de resposta, em todas as suas reações e respostas. Ele insiste em se declarar e querer que ela vá com ele, mas, sem resposta, acaba por desistir. Esquecer, abandonar, refazer-se. Os segredos e as expectativas dão sempre o tom do enredo de todo o filme, vivenciando que o encontro mais do que ser uma escolha é uma combinação, um convite. “Chow Mo Wan: Eu tenho um segredo para contar a você. Você partirá comigo?” (2046, 2006, 1: 25’05”, tradução livre) O pensamento é um delay, o afeto uma conexão e segredar isso é fenecer em partida. Corpos tecnológicos ou não, estamos sempre a refazer programações, repetir movimentos e acumulando informações, tendo que nos liga ao mundo como único dado confiável. Não importam aqui os corpos, mas as conexões. Não importam os pontos de chegada e sim o deslocamento. Não importa o segredo, mas o afeto.

Sutil humanidade, essa que se desenrola em apaixonamento.

*

Como se medem graus de humanidade? Qual o corte entre humano e resto? Processos lógicos e raciocínios são parcos. Transformar o mundo para certo objetivo, isso os fungos já fazem há milênios e a própria atmosfera se revolve em mutações todo o tempo. Autonomia, afeto, combinação, virtualidade, conexão, palavras técnicas para nossa constituição, mas afiadas ao tocar nossa perecível existência. Os humanóides-espelho nos mostram nossa processualidade: reprogramam-se para emocionar, escapam dos limites preestabelecidos, mutacionam com o mundo por sobre bases eletromagnéticas, constroem carne humana com metais e plástico nos encontrando na margem do toque. A fabricação de humanos é feita a todo instante, fabrica-se. Mas é na integração com o entorno que surgem singularizações e a vida se mostra humanóide em dispersão. Conexões que nos refletem em existência, limites a serem torcidos em singularidade na agonística que é estar humano, estar real. E uma mistura necessária que nos aqueça o corpo.

O que queremos desses supostos falsos-gente, o que eles fazem que precisamos tanto deles? Não precisamos de seus corpos cibernéticos para brincar de eternidade ou mesmo aguçar suas faculdades mentais supra-humanas para experienciarmos perfeição. Deles só podemos ouvir uma coisa: a singularidade do grito que eles podem dar e nós não.

Referências:

ALLIEZ, Eric. A Cidade Sofisticada. IN: Contratempo. Ensaios Sobre Algumas Metamorfoses Do Capital. Tradução: Maria De Lourdes Menezes Rio De Janeiro: 1988, Forense-Universitária.

Filmes:

2046 – os segredos do amor. Direção: Wong Kar-Wai, 2006.

Blade Runner. Direção: Ridley Scott, 1982.

Ghost in the Shell. Direção: Masamune Shirow, 1995.


Conta – um grito coletivo, o intolerável

 

Conta é um texto coletivo. Pleno de imagens vividas por mim e por diversos companheiros militantes de diversas modalidades, que lutam pela vida, que trabalham diretamente com violência, que vão a acotovelar-se por espaço em um cenário cada vez mais rarefeito e truculento.Queria eu que as imagens fossem alegorias, invenções de pesadelo ou mesmo inflação em paranoia. Não. A maioria do que está escrito é cruelmente real, real.

Sou psicólogo de formação, trabalhei anos em Saúde Mental, trabalhei em comunidades, estive dentro da Universidade Federal muito tempo… E mesmo que a experiência de ver a morte nos olhos, de sentir o extermínio minar das paredes das instituições, de soluçar de medo e desespero que muitas vezes vivenciamos juntos, daí que vem alguma força, alguma.

Esse texto é coletivo. É vômito e drenagem de pus. É feio, mau cheiroso e dolorido,como tem andado esses tempos. Mas também belo em braços fortes de tantos. Insistente como a vida multifacetada. Coletivo porque não me pertence, é  mais retrato sudário, chorado, sangrado, de tudo que teimamos em não ver. É pra diluir a dor e o desamparo, mesmo que seja de ódio o grito por vezes. É pesado pra mim, pra todos nós, e se não revesamos vão todos de joelhos ao chão em exaustão ao mesmo tempo.

Os assassinatos continuam, mas o exemplo assombra longe e frio. Parece a cabeça de lampião sobre a mesa aqueles tantos tiros em uma rua do Estácio. Parece um tronco de chibata a quantidade de sangue. Parece os caixões abertos da IML em nov chacina.

Parece, mas não é. É uma mulher  negra favelada lésbica militante dos direitos humanos vereadora assassinada como se nada fosse… Em 2018. 518 anos disso não reduzem o impacto, aumentam o pavor.

É coletivo porque preciso de muitos, porque não sou só, porque são muitas vozes em conclame, aí onde viro gente um instante. Não quero autoria, quero euforia. Todos.

Coletivo, dispersivo, ácido e trágico, como tem muitas vezes sido esses tempos.

Me amedronta, por isso preciso dividir o peso, precisamos. Não imaginei que tudo seria tão imiscuído e concreto, mas tem sido e cada vez mais surdo e certeiro o tiro. Me assombra, mas o abraço acolhe, ninguém consegue sozinho.

 

Coletivo, de todos, aos ventos… minhas mãos estendidas, sangue. Mas as mãos ainda estendidas.

 

“Aos urros, aos murros,

Há de brotar.”


Van Gogh – o suicidável da sociedade

 

Qual um dos mais intensos e catastróficos artistas encarnados que já me aproximei, Van Gogh mostrava-se, em toda a minha vivência, como um perigo. Perigo em eu ser pequeno demais para tocar suas cores; perigo de, por hipnose, ser queimado em seus sóis âmbar e não ser capaz de distinguir mais o que me fazia espectador em segurança; perigo de virar volta de luz no céu negro anil dele; perigo de ver demais… Daí certa precaução para com ele, para com sua obra. Não por mim, por buscar resguardar o que em mim ainda não estava deveras (e sei da ilusão parca dessa afirmação) em prumo para estar com ele, mas por ter sua obra numa tal vivacidade que me seria um movimento de arrogância falar dele, falar de sua obra… Não seria respeito, ele me pede gravidade, me ameaça, me mata de tanta vida…

Tanta vida. Mas a obra – mesmo sendo com seu autor, parte dele e já também uma transformação destacada do caminho terreno do corpo humano que a produz[1] – segue em abertura, tão vibrante que é impossível saber onde vai a estar. Mas os homens o sabem; tudo que tem brilho demais, ou mesmo trevas espessas, deve ser domado, digerido, enclausurado em vidro a prova de balas, para que seu efeito seja aplacado e para que, assim acuada, entre, enfim, num uso digno ou mesmo faça algum valor à sociedade. Valor. Relevância não em experiência vibrante, mas valor contido, embrulhado e muito bem retinto em seu percurso esperado e repetido em manter o mundo como está, onde possamos somente admirá-lo no que tem de belo.

Belo. Palavra singela que possibilita tanta matança. O debate sobre a estética, classicamente entendida na filosofia e na arte como setor de estudo do belo, recai muitas vezes sobre valores canonizados e avaliações de especialistas privilegiados. Pouco me importa por agora, o que busco em beleza é a potência de transformação. VanGogh não se colocava a pintar para embelezar as coisas ou mesmo traduzir o mundo em sua perfeita formosura. Era a potência inegável de se mostrar o redor em crueza que o fazia avassalador pintor, aferrado à beleza incontestável de tudo, tudo.

Tudo. É isso parece ser a “partícula de insuportável” no terreno da arte profissional. Não se pode almejar muito; não se pode esperar de iletrados, poemas; não queira da selvageria, a fascinação refinada. Mas às vezes isso espirra, algo escorrega insuspeito, e, assim, as pinturas de Van Gogh insistiram, como mancha indelével e inegavelmente visível. Ele pereceu, sua arte se firmou, mas além de fazer apanhados históricos e reflexivos do caminho artístico de Vincent van Gogh, o que ressoa mais premente é: como a arte é processada em nossos tempos, ou mais, o que se faz de tudo isso?

Isso. Temia muito em escrever sobre Van Gogh. Não me achava capaz de traduzir em palavras algo que seria mesquinho frente à experiência de suas pinturas. Não poderia fazê-lo medíocre, pois minhas falas seriam muito pouco. Mas parece ser exatamente o oposto que temos visto acontecer…

Acontece. Após certa espera ansiosa, pois os frames que tinha acesso e a pompa que adornava o trabalho em tons muito febris e ao mesmo tempo cálidos como o famigerado pintor, fui assistir o filme “Com amor, Van Gogh”, animação completamente pintada a óleo no estilo expressionista de Vincent e baseado em diversos quadros e temas retratados por ele em suas pinturas. Aí acaba a força desse filme. O assombro das pinturas em movimento, as cores e a ressuscitação das imagens fixas tão conhecidas, é completamente sepultado por uma escolha. O enredo – o script se podemos falar em termos cinematográficos, o argumento se falamos de crônicas ou literatura – é uma escolha. Uma investigação do suposto suicídio do pintor, em um curto melodrama que transforma o jovem indócil Armand em um perseguidor de certa verdade atroz que justifique os atos do pintor lunático, mas que, numa parca virada de belo anti-herói, vai a “compreender” suas circunstâncias, chegando mesmo a defender que o homem Van Gogh era um gênio que deveria de toda maneira ter sido assassinado em círculos de inveja, intolerância e desastres familiares-econômicos. Isso é uma escolha. Transformar a possibilidade de adentrar as cores de Van Gogh para contar o homem frágil, mas genial, chega a ser patético. Fragiliza-se o que já é carne podre. Pode-se fazer isso com ele, já o foi feito certa vez. A incompreensão é uma cortina cristã violácea e culposa, leve demais para cobrir um fardo ensangüentado e esquartejado minutos antes.

Antes. O corpo já estava seco, sua própria ligação com o mundo já o consumia. Mas opta-se, novamente, pela pedrada. Em nenhuma altura entra-se em contato com a revolução que um homem louco causa ao deflorar o mundo em cores e urgência de beleza apocalíptica; melhor pensar nele como um viciado fraco torpe, mas de coração cálido e que se resigna em seu assassinato ao salvar – como um cristo caridoso e de cabelos ruivos – seus opressores. Muito mais simples pensar que a falência deve-se ao fato de que ele não se contentava em ter um humor difícil de lidar e que a família consistia-se de homens fracos, além do mau agouro de nascer sob o signo do irmão morto e – obviamente – enclausurado na castração familiar de nunca ter amor da mamãe ou aprovação do sisudo papai. Melhor transformar tudo numa noveleta muito mais instigante, que faz flertarem com maestria Agatha Chrite e Dr. Freud, escalando personagens em sua mínima superfície, mais rasos que as pinceladas originais do pintor holandês.

Seus amores sempre foram a reprodução de seu conflito familiar mau resolvido. Seus ataques de loucura geraram o afastamento e, coitado desse cão morto de fome, foi sempre chacota. Um homem à frente de seu tempo, que caiu nas garras gananciosas de um psiquiatra tão retrógrado e invejoso que fez seu nome da doença que aterrorizava o tal pintor obsessivo. Feito uma linha torta de tempo inusitada, Van Gogh retrata certo Prometeu acorrentado a ser consumido em perpétua regeneração para o fastio de deuses frente a petulância de enxergar demais. Ou mesmo da Geni, a quem todos devem rogar piedade em sua preciosa entrega, mas que ao descer ao solo deve novamente ser escorraçada e embostada, pois tais seres estranhos foram feitos pra apanhar, são bons de cuspir.

Cuspir. Um filme não é um texto. O orçamento de uma produção cinematográfica como a de “Com amor, Van Gogh” deixaria vários projetos artísticos para trás. Mais de cem anos depois e ainda é intragável o que Van Gogh nos faz tocar. Após a quase completa plastificação, reprodução, dissecação, venda e revenda, suas pinturas parecem ainda uma farpa nos olhos. Mesmo que este maníaco tenha merecido morrer vendendo um só quadro e que agora, nós, modernosos, que o compreendemos e, enfim, nomeamos as contas mais gordas de um certo banco com seu brilhante nome, talvez esteja ainda a cheirar a falta de banho e amoníaco das tanta tinta a óleo. Não se trata de perder uma “chance de ouro”, ter o inimaginável em termo de qualidade, impacto, experiência visual e completa primorosidade que as imagens do filme portam, com uma narrativa que foi por demais diluída para que as massas que acendem às grandes salas de projeção pudessem ter um acesso, alguma ligação com a história do pintor ou mesmo compreender o magnífico luxuoso de tais obras primas. Não. Isso é um ato,uma produção, uma afirmação. Pois se isso é cogitado, estamos nós deitados no chão junto a Van Gogh, a esperar as pauladas em nossos corpos vira-latas burros e selvagens. É uma escolha não entrar tão em contato com o que Van Gogh em sua radical afirmação do mundo em beleza deliberada. Uma escolha ter uma vida recontada de certa forma, onde não cabem as pinturas, onde não cabe o irascível. É melhor imaginar sua doença dos nervos que suportar que não toleramos olhar o sol por tempo demais. Mais seguro ver as pinturas por detrás do véu psicanalítico e psiquiátrico, com suas confortáveis bordas, repetições, padrões, perversões de zoológico e claras demonstrações exemplares, do que olhar o pintor de frente e ver a fúria que a vida possui. Muito mais interessante, em termos de entretenimento, assistir à caça da bela verdade por trás de um homem injustamente incriminado, do que incomodar-se com o entorno ao pensar na morte sem propósito.

Quem é o público? Quem é Van Gogh? Ele nunca se importou, mas sua carne suicidável chega a parecer as cabeças decepadas por sobre os postes da praça central a indicar que: sim, somos misericordiosos, vejam, até lhes demos a extrema-unção! Pobre diabo, mas que teve seu fim em perdão, pois não sabia o que fazia. Ou ainda o gozo histérico de todos os peritos a quem uma figura atroz lhes dá a deliciosa possibilidade da projeção segura, como numa decalcomania, serem loucos, serem gênios, fazerem sexo, serem impetuoso, ao invés de meros pedaços de gente que repete, há décadas, certos jargões que jamais sentiram apego por fim.

Fim. Ele é um rasgo. Van Gogh não existe, se refaz em luz e morte, na beleza por todos os lados. Não quis compreensão, não se importava com isso, porque o mundo dos homens é só violento, nada mais. Ele se retira, porque não precisou estar ali em nenhum momento. Se descarta pois mora no encontro do mundo com sua cor na ponta do pincel e só. Quem suporta essa fenda? Como tomar o café de toda manhã em sua caneca dos famosos girassóis – que nunca achastes tão bem pintados assim –, que são lindos em amarelo, como que te alegram todas as manhãs, e ver que Van Gogh não os achava belos, mas sim impossivelmente vivos? Na podridão da vida. Como imaginar que a ternura de tantas flores foi pintada a base de monótonas repetições e drogas? Onde colocar o asco ao pensar esse homem que cortou a orelha quando vemos as tão lindas cores de seu quarto praticamente infantil? Onde trocar o valor do ingresso desse museu que expõe obras de um homem que transava com prostitutas? Como admirar e refletir sobre como a pintura é beatificante ao ver a solidão de Van Gogh? Como não imaginar que o amor entre irmãos é coisa tão valiosa e que vou a dar um grande abraço no meu irmão como Théo não o pode fazer com Vincent, mesmo que eu não suporte nem o meu vizinho? Espelho quebrado e ausência de reflexo. Como sair da hipnótica sedução de um psicopata tão genial e amoroso e ver que somos todos matéria orgânica em pulsação? Onde enfiar minha ignorância quando não me emociono com as cores da noite estrelada sendo que esse homem só pode ser um profeta da beleza pura descida de algum céu, como disseram amigos meus na galeria? Onde colocar minha pena se não em um coitado?

Enfie no cu, Van Gogh não está, escapou aos cacos.

Cacos. Só a rejeição pode explicar um homem que pinta tão caóticamente quanto este, não é? Só o milagre divino que nos faz brindar certo primor estonteante de graça, tão incompreendida pelos atrozes arcaicos do século XIX! Só um bom coração de perdão para justificar todos os pecados desse homem torto, coitado!

Coitado. A hipocrisia escorre, cruelmente, daquele filme… Vincent falou de amor todo o tempo, mas esse não foi um ato de amor, e sim dum avesso bem sucedido. Amor elementar o pintor clamava, e teve ironia caquética roubada de suas cartas como título… Há diversas versões de uma história, um homem não é só louco, coitado, ele sofreu muito. Que tal, ao invés de escutá-lo, a gente só faça a ligação dos pontos dessas pessoas más para descobrir e – finalmente – compreender porque ele pensa dessa maneira? Realmente agora entendo seu isolamento, suas cores inusitadas, mas aí está, sua redenção: um homem doente, traumatizado, mau compreendido, pobre, explorado, mas que de tanta compaixão vira uma obra prima do coração humano de todos nós. O que seria do ritual se o corpo não fosse novamente encenado, torturado e redimido no minuto final?

Não se escuta Vincent. Não se busca viver com ele, e sim compreender a verdade atrás dessa maldição. Insuportável ele, desde sempre, feito uma fotofobia, um grito mudo em matiz. Não quero saber o que ele pintou, foi um homem do bem ou do mal? Não quero ver as cores e sentir essas coisas sem nome, e imaginar o que é arrancar a própria orelha. Quem quer saber em que transformamos a arte, quero meu broche para ser hipster. Lindo demais esse filme, recomendo, tadinho dele, ele sofreu demais, mas lá eles explicam tudo bem direitinho, ô gente ruim a que rodeava ele… Se vivesse hoje seria rico…

Rico. A animação quase que se descola do enredo e da trilha sonora policial-sentimentalóide, chega a quase pingar de tão incrível, mas some no mesmo ralo do ato: vamos a matar Van Gogh como ele merecia desde o começo: urgente calar, sempre mais urgente, pois os contratos são milionários, os direitos autorais todos em processo bem fresquinho, e as filas estão a crescer: Venham ver o louco genial, venham a preços módicos, leve pra casa seu souvenir desse famigerado homem celestial, mas andem logo, há mais gente atrás.

Tais corpos pouco importam, os suicidamos como diria nosso irritantemente sonoro Artaud[2]… Processa, dilui, vai que dá pra vender? Mais do que respeitar e pagar tributos às obras, o que cria uma catividade da obra em um interpretacionismo atroz, devemos deixar que as obras nos matem, suicidem em nós o que se mantém fixo, escarnem o habitual e resguardado do cidadão comum,  estourem e nos empurrem dos penhascos.

Penhascos. Da tentativa desesperada de tamponar a sensibilidade brota esse nojo. Toda doçura amarga frente esse uso, essa parca parcela de optar pelo menos, pelo seguro, pelo coquete, pelo dinheiro, pelo uso alegre das heranças de gaveta… O dia passa, a luz sublime deve ser a morte mesmo, pois todos a temem, não por sua verdade final em desvelo, mas por sua crueza sobre a pele e pela explosão de nossa idiotice incontestável ao tocar o mundo.

Mundo. Persiste em deslumbre, em desbunde. Um filme, um ato, mas toda e fúria de um certo Vincent que abriu-lhes um talho na carne. Esse de onde ele inocula, no cru, todo o arroubo desse mundo. Intolerável, como raio solar e breu completo, nos fendem outra vez.

 

E nós que não estamos, no que eu me sinto inclinado

para acreditar, de modo algum tão perto de morrer, no entanto

sentimos que a coisa é maior do que nós e

de maior duração do que a nossa vida.

Não sentimos vontade de morrer, mas sentimos a realidade

que somos muito pequenos e que para ser um anel

na cadeia de artistas, pagamos um preço muito alto

na saúde, na juventude, em liberdade, de que não gostamos

no mais mínimo, não mais do que o cavalo fiacre

que arrasta um carro cheio de pessoas que vão aproveitar

a primavera. (VAN GOGH, Vincent. Cartas à Téo, tradução livre, p 208)

 

Morto, nos faz viver.

 

 

[1] Esse ensaio se refugia em Deleuze e Guattari nesse momento em seu texto Percepto, afecto, conceito em O que é a filosofia? para evitar divagações exaustivas sobre a arte, pensamento e ruptura. Daí ele salta, o ensaio, para o enfrentamento direto.

[2] Artaud clamou o suicidamento de Van Gogh na década de 40 do século XX, mas isso deve calar, um pouco mais, mais à frente… Psiquiatras, especialistas, anatomistas da vida normal temos aos montes, mas a fúria não tem descanso também, ela insiste.


Parece que estamos a 40, 50 anos atrás, mas não estamos.

parece

 

Parece que estamos a 40, 50 anos atrás, mas não estamos.

um brasil golpeado – cinzas e muita fumaça com ardência chiando -, uma norte América gestando guerras sem fim e endossando um porco capitalista como presidente, morre-se no deserto, morre-se na cidade, morre-se no oceano, e se não morremos vamos a viver quarentenas obrigatórias.

a escola des-universal vez mais, matérias de humano pensamento banidas do ensino dos adolescentes, a ideologia palavrão e a política da vida comum perseguida mesquinhamente, a universidade em fossos a sugar suas bases e em eminente privatização,

o doutor manda, o consultório é particular e posto de saúde é emergência e olhe lá, teu corpo tua responsabilidade, precise menos, por favor, porque saúde custa e se não tens não tens. Particular, público, não importa, um fígado por centenas de reais…

crise e desenvolvimento marcados, medidos e sacramentados somente pelo giro monetário, nem um centavo a mais. A exploração refazendo velhos e novos escravos, subempregos – ordem do dia, preconceitos acirrados e chacina não aparece mais na televisão, não precisa, nunca precisou.

a visibilidade marginal parece acirrar ainda mais a perseguição, trans correm ainda pelas ruas, pretos são presos a perder de vista, caipiras não devem escolher, pobre não merece luxo de inteligência, mulher é pra deitar, bicha aberração e sapatão nem existe. Nosso beijo ofende ainda, mesmo que nosso poder e corpos ainda gritem: SIM, vai ser asSIM!

a intolerância tem sido a prova dos nove, lutar é palavra suja, mas vibra atualmente como doença infecciosa, suor e sangue. Banqueiros engordando, polícia espremida a espremer a espremer a espremer os de baixo seja ele em que direção for, cumpra-se…

droga que se alastra em veneno e não prazer, AIDS que infecta jovens, aposentados sem perspectiva, desastre ambiental varrendo cidade saúde gente água e deixando línguas de lama cancerígena. Cadáveres de toda espécie e nenhuma vela sequer.

discursos de cataclisma, caça aos culpados, a dizimação de etnias quase inteiras, o fechamento das fronteiras, a vida a se consumir seja pelo trabalho seja em modelos práticos proto-simulacro-hedonistas…

o macho mais bruto, o feminino mais acuado, o infantil consumista e um individualismo a sair pelo ladrão…

 

Parece que estamos a 40, 50 anos atrás, mas não estamos.

o amor livre e os casamentos de branco,

a cultura negra ainda a ser folclore,

índio só pra carnaval ou livro de estória,

No slogan ainda re-marca “ordem e progresso”,

a América latina em reações à sua veia esquerdista, naquele velho combate alérgico de colonizar à força em pernas abertas, curar enfim essas malditas terras que teimam em cultivar combate,

as diásporas, a falta de tempo e o medo da rua,

o jogo de cozinha e a tecnologia, o pé no chão do matuto.

palmatória química, a doença e seu rio de dinheiro a ser macrodrenado,

a corrupção, os pauzinhos mexidos, homéricas emboscadas e pífias conclusões, só não se explode bomba no colo de general porque não é mais preciso,

a palavra de ordem voltando a endurecer e a ser combatida, as  hipocrisias a cheirar a colônias tipo exportação evaporando pelo ralos da cidade,

o arroto gordo da Metrópole que ainda habita em nós a dizer da malfazeja sina de ser mestiço, burro, pobre, e que deve-se embranquecer, alisar, alpinistar sejam classes sociais sejam transportes públicos para seu individual posto, a jogar fora marca de pele histórica, a ter calafrios de ansiedade para viver sempre de um certo futuro,

e querer neve ao invés de sertão.

 

Parece que estamos a 40, 50 anos atrás, mas não estamos.

filmes de super-heróis, meninos de rua, conjuntos habitacionais e condomínios de luxo, poluição na baía e água mineral saborizada,

falta d’água e hidroelétrica.

amazônia fantasmagórica, sem terras moídos e máquinas de agro-negócio a mastigar terra, gente, planta, dizendo-se TUDO. Cromossomos de produtividade inteiros no horário nobre.

não escreva poema, só se for de beleza européia, ou de desmaio íntimo melodramático. Falar é preciso, ter carne não é preciso.

 

Parece que estamos a 40, 50 anos atrás, mas não estamos.

Enquanto alguém gira uma taça de vinho a blasfemar pela falta de empregadas domésticas devido ao Bolsa Família, essa mulher se levanta.

Enquanto a espuma virulenta profere que os meninos que namoram deviam ser pendurados pelos testículos e ensinados à pauladas, esses dois se dão as mãos.

Enquanto o eloqüente cachorrinho de oratória fascista conclama Machado de Assis como último grande escritor brasileiro, a legião nos invade – os pelo menos 200 insanos da literatura soerguem – e escrevemos.

Enquanto montam-se governos a congelar saúde e educação, baseado em homens brancos e burgueses, os seios estão à mostra é nutrição de resistência.

Enquanto as câmeras se montam na sala de aula a procurar doutrinadores, destilamos a dor de estômago em questões infernais como: suportas ter esse sangue em suas mãos?

Enquanto o discurso intolerante oferece miraculoso curto conforto a eliminar o ERRO do mundo, errantes ainda brincam e pixam toda a cidade.

Enquanto o dinheiro some, o coração bate.

Enquanto evacuar e dispersar são forçados com bombas na cabeça de mulheres, idosos, homens e crianças, a gente ocupa.

Enquanto a ordem progride, um abraço deixa a lágrima menos amarga.

Enquanto os modelos de participação são cooptados, encontramos a vida a explodir por todos os lados feito praga.

 

Parece que estamos a 40, 50 anos atrás, mas não estamos.

Cachorro louco, matilha de amor.

 

Estamos uivando.

Parece, mas estamos mais.


Escrever – a que será que se destina?

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Aqui me propus a escrever. Mesmo que escrever seja algo de indomável, aqui é a escrita que tento habitar sobremaneira. Inutilidade diária frente a um produtivismo consumado, escrever é sortilégio e riso, pois escapa. Lança, percorre, fura, turva, estraçalha – e o que menos importa é o alvo.

Claro que se tem técnica, certos calos nos dedos e insistência para repetir palavras intermináveis, mesmo que muitas vezes fiquem a rolar na boca feito bagaço de cana ou fiapos de manga entre os dentes.

Não se escreve bem. A bela escrita, essa do talento quase orácular, essa que todos buscam acessar em meditações e receitas gourmet, paira sublime e intocada, mas ninguém sabe quem diz qual é a palavra polida e a bruta. Sabe-se sim, mas dizer em voz alta quem escolhe é tiro no pé, ou melhor, nas mãos, olhos e ouvidos.

Escrever bem, isso é para ostentador pequeno, para intelectual acuado em mísera fortaleza de papel. Eles sim escrevem bem, fazem críticas primorosas, conhecem o que tem de se saber para poder ler qualquer texto além do texto, e veem ainda mais além do que qualquer cidadão ludibriável pela arte de letras. Escrivãos arvorados a escritores, pois essa dita arte literária dominada por estes mesmo intelectuais é muito mais repetida pela função de escriba prestidigitador que por inspiração. Os sublimes donos dos sentimentos depurados, que enxergam nesse humano animal certo toque divinal dum verso perfeito. Esses Olavos Bilacs que enchem de traços rebuscados essa covardia que é ser intelectual, escolhem.

Não quero isso. Eu, desde que aquele filho do carbono e do amoníaco me deu sina, que perdi muitas vezes a voz frente ao mercado editorial, insisto.  Mas faço petulância feito carrapato que faz comichão leve só a pedir ajuda pra furar mais fundo a pele e engordar enquanto caminhamos no couro uns dos outros. Não quero ouro algum das palavras, pois elas são meu sangue, meu respiro.

Escrevo como quem devassa a vida, num desejo tão grande de aproximação que fico a babar com um olhar da rua e espumo de tédio ouvindo os grandessíssimos eloquentes de nossos tempos – esses com muito mais updates e argumentações capciosas do que você mero medíocre do contemporâneo. Apenas curta, por favor. De post em post perco completamente a vontade de ler, mesmo que esse seja um dos meus maiores prazeres. Mas leitura, arte e vida pra mim é a mesma coisa, e tudo que tem fome e luxuria me atrai muito mais que referências bibliográficas.

A vida mora em tudo, mas nas frases é artesanato fazer brotar um pulso bom, um rompante digno de suspiro e certo veneno anti-monotonia que dure gerações. Não recheio papéis da mesma forma que não amolo as facas cegas da violência. Minha bruteza é de outro gume, é de sorriso, de carne, de gente boiada viva, de ave de céu amplo, de luta corporal seja no grito ou no afago.

Em tempos de mesquinharia e hipocrisia pra que escrever? Que artista é esse? Escrever é pra acordar afeto e nutrir. Rosas pequeninas. O resto é sanha de viver, de fazer gente e mundo feliz, no correr a vida em sua magia potente, e só.

Apensa a matéria viva era tão fina.


Re-voar

Não sei como tirar isso da alma, do sistema.

Diria que sinto um vazio, mas não se trata disso. Um aperto de desprendimento, algo mais próximo de uma taquicardia sem propósito. A indeterminação dos dias abarco com afazeres, encontros furtivos; ocupações mínimas diante do assunto do coração, mas plenas de realização e contato real. É algo a se aprender. Esse desapego. Deixar os atos mandarem no coração como disseram tantos caminhos. Resigno, sinto que estou sim conseguindo trilhar algum caminho de verdade, que as cores do dia quente se fazem, sei disso, abraço isso, aceito sim. Mas subsiste ainda fino rio frio, ponta de gélida brisa que escapa. 

Vicio cultivado, certo apaixonamento que ainda nutro pelas coisas, caminho que ainda se mostra certo mesmo que tenha de ser adormecido por agora. Um céu escuro e calmo com aquela lua plena e minguante praticamente estática.

Estrelas aos milhões a real mancha láctea na noite incólume a me dizer, sim, é tempo de migrar.