Arquivo do mês: dezembro 2020

Supernova


À Macabéa, seu imenso pulso cósmico e cru.

Tomar, enfim, o caminho. Não há escolhas para o tempo, a não ser transcorrer e cadenciar-se com as arestas de cada instantâneo na infinitude de poeira e sangue dentro deste mundo. Ocorre, pesado de tonelada no mesmo momento em inimagináveis milímetros e abissais extensões, o segundo. Qualquer caminho é caminho para ele. E fico estatelada com a pungência que é continuar a ter as células e se transformar em duas, três, tantas. Continuar a ter o ar me invadindo pelos buracos do nariz. A constância circular de minhas veias e a aspereza quente de tudo que me rodeia mesmo sem me tocar. Sua mão, a lua, enfim, minha ira sedenta de futuro e o pé manco porque é chão demais. Sempre viva e com o tempo a pressionar minha cabeça sem dor alguma, simplesmente estou. Nem busco sentido, mas sentida dou o avante, porque mesmo pra trás não tem volta. O que importa não são meus seios de mulher e muito menos meu ventre rente. Minha pele recobre isso por inércia, não preciso me preocupar. São meus olhos enfim, moço. Meus olhos que simples castanho-escuros como qualquer íris ordinária, esses que desde criança espero a terra abrir a boca para comê-los. Eles que afiam minha lâmina. Que, de longe sempre, veem tudo. Tudo. Maiores do que a cidade inteira, procuram. Pouco importa o que está na mira, são obscenos. Enxergo desde muito pequena e isso, mais do que dom ou só capricho, me escraviza. Jamais imaginaria o que se passou diante destas bolas pregadas na minha cara sem linhas. E assim, minha pequenez dimensionável por réguas bem aparadas tem o mundo todo participando, parasita.

Eu vi, vejo. É o ar que brilha sob a roda de um carro mais veloz plena de pó fino e vil. Uma nuvem que se rasga sobre a água comprida da beira do mar. As rugas de minha mão acentuadas pelo batom que limpo da boca mal utilizada no fim do dia. A folha molhada de papel se desfazendo numa poça. Incomensuráveis pelos a cobrir cabeças descobertas sob um sol de rachar. Folhas que se ajuntam numa pequena oca frágil e vacilante no canto do meio-fio. A fuligem negra que aveluda tudo com um toque de imundice e conforto irremediável. E a ponte de minha córnea a piscar maravilhada com nada.
O que me custa, afinal? Há custo, sim, tenho certeza. O que não custa não existe no planeta de verdade. Meu calor, minha alma, minha cidade, meu mar, meus sapatos baixos, suas calças e as penas da pomba custam, caro. Mas pouco me importa, não escolho nada e fico olhando. Não me imagine pedra plena de dureza. Queima-me. Quase odeio. Vejo saltarem suas veias em cada impulso comum de coração. Tua saliva promiscuamente sendo produzida para um cuspe na sarjeta. Os brotos de suor em suas sobrancelhas e seus olhos amarelados e irrequietos. Tenho vontades de desfazer o fio inteiro de uma só vez. Descascar cada camada do que se presentifica com minhas próprias unhas. Uma declaração de completo ímpeto sobre o que me realiza. Pedi opinião? Não. Somente me faz arrepiar de pungência cada vez que continuo teimosamente a ocupar ar. Quieta, explodo as fronteiras visíveis e não perco vontade alguma de continuar. É o dia uma vez mais e minhas tripas retorcendo diante de mim e de mais ninguém. A impressão é que somos calos, cicatrizes fendidas eternamente entre o que amargamos ter sido e a inatividade de ser ainda mais pra frente. Faça-me feliz e me esqueço, até me lembrar.

Uma descarga elétrica que me eriça os pelos da nuca e trinca os dentes sob minha flácida língua adormecida. Faísca. Não se trata de pensar em palavras exatamente, palavra alguma. Não crio mundo interior, não posso, não sou capaz. Sinto meus ossos feitos do avesso, minha carne colada em cada parede que se ergue, meu cérebro funcionando nos circuitos de rádio e televisão com volume bem alto, meus pés sob os cascos secos de todo animal, meus cabelos são raízes, e meu sexo nutre todas as torneiras. Quero minha parte só, que é tudo, e assim meu corpo branco não suporta. Atravessada involuntariamente. Sinto amor em cada beijo trocado por lábios de outrem. Sinto a ira de imemoriais exércitos sedentos. Brota-me uma lágrima para cada soluço perdido pelas esquinas. O calor que me dá no peito em cada abraço dos moleques felizes. Só não sei se tudo me pertence ou se somente interferi no que não devia. Talvez, pois. O tudo é que me possui.
Não quero a mágica de ter uma astronômica paixão. Minha magia já existe, e me cansa até. É só o primeiro passo que me aterroriza. Esse que já se faz sem minha permissão, que já foi dado e me pôs aqui de novo olhando meu reflexo inócuo e opaco na vitrine da loja que paramos há minutos. E as jabuticabas de meus olhos assistindo à rua atrás de nós passar ao contrário. E você aí, e eu aqui e um silêncio no meio que só falta ter reflexo também.
Caio no torpor da espera. Minha vida sempre foi espera. O espetáculo particular que meus olhos mais velozes que meu pensamento me fizeram público. Só que nunca tenho tempo nem de bater palmas, recomeça. Lembro do tapa que mamãe me dera no rosto certa vez e sem perceber já chorava muda e inerte. A santinha que chora. Meus vestidos de pequenas estampas que fico admirando, vislumbrando cada florzinha que explode na ponta duma linha corrida coalhada de outras flores iguais. A água pingando da bica devagar e gorda em cada gota que me divertia infinitamente nas tardes de adolescente. Lembro das bocas falantes e eu só conseguindo prestar atenção ao balé dos movimentos da língua, o brilho dos dentes amarelos dos outros e os pingos de saliva que saltavam esporadicamente; minha cara vidrada sem compreender palavra que havia sido dita. Não posso mais, feneço de felicidade fácil com qualquer coisa e isso me encerra em tudo, menos em mim mesma.
É como se com um giz eu finalmente riscasse meu contorno. Fazendo voltas, dando-me dedos nas mãos verdadeiras por fim. Uma caneta mais forte me dando, um a um, fios de cabelo ondulado. Imprimir digitais nos dedos do pé, para uma pegada com meu peso e minha altura misteriosamente precisos na areia. E em minhas páginas em branco me dar nome, endereço, idade, amor, limite, finitude.
Uma gota salgada escorre de meu nariz e me chama. Meus olhos não pararam de trabalhar, mas, como já disse, sem eu perceber. Você coloca a mão no bolso apertado, São suas veias sobre o fino braço. É sua pele firme e russa com a cor mais bonita que já vi. Seus dedos voltando do fundo com o maço de cigarros amassado. Sua mão que retorna e traz a roxa caixa de fósforos linda como um presente. O risco brilhante, a fumaça, a ponta acesa, mais fumaça, o balanço e o pequeno palito cai no chão como um corpinho de boneca. Seus lábios mais grossos que os meus beijando o filtro branco. E a dor que me dá no peito, pela fumaça, pelo espetáculo.
Não preciso, me basto sozinha. Mas quero, com toda a força do que já percebi, ter finalmente a fraqueza de ser gente, e só. Não é felicidade a palavra, pois essa eu já conheço. É uma que talvez não exista, não que eu saiba. Preciso encontrar a palavra que procuro por querer. Escrava de minha plenitude, eu preciso finalmente ser de verdade, ser minha para poder me dar aos outros, a tudo.
Uma espuma parece agitar minha garganta. É minha deixa, agora sou eu quem vai morrer e não mais o segundo que passa. Perdendo o foco num só instante, abro a boca de leve e deixo sair minha sentença que não sei se é fatal, mas é a que preciso.


─ Eu gosto tanto de parafuso e prego, e o senhor?

Sinto-me arrebatada. Pronto, cá estou eu de verdade.