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Supernova


À Macabéa, seu imenso pulso cósmico e cru.

Tomar, enfim, o caminho. Não há escolhas para o tempo, a não ser transcorrer e cadenciar-se com as arestas de cada instantâneo na infinitude de poeira e sangue dentro deste mundo. Ocorre, pesado de tonelada no mesmo momento em inimagináveis milímetros e abissais extensões, o segundo. Qualquer caminho é caminho para ele. E fico estatelada com a pungência que é continuar a ter as células e se transformar em duas, três, tantas. Continuar a ter o ar me invadindo pelos buracos do nariz. A constância circular de minhas veias e a aspereza quente de tudo que me rodeia mesmo sem me tocar. Sua mão, a lua, enfim, minha ira sedenta de futuro e o pé manco porque é chão demais. Sempre viva e com o tempo a pressionar minha cabeça sem dor alguma, simplesmente estou. Nem busco sentido, mas sentida dou o avante, porque mesmo pra trás não tem volta. O que importa não são meus seios de mulher e muito menos meu ventre rente. Minha pele recobre isso por inércia, não preciso me preocupar. São meus olhos enfim, moço. Meus olhos que simples castanho-escuros como qualquer íris ordinária, esses que desde criança espero a terra abrir a boca para comê-los. Eles que afiam minha lâmina. Que, de longe sempre, veem tudo. Tudo. Maiores do que a cidade inteira, procuram. Pouco importa o que está na mira, são obscenos. Enxergo desde muito pequena e isso, mais do que dom ou só capricho, me escraviza. Jamais imaginaria o que se passou diante destas bolas pregadas na minha cara sem linhas. E assim, minha pequenez dimensionável por réguas bem aparadas tem o mundo todo participando, parasita.

Eu vi, vejo. É o ar que brilha sob a roda de um carro mais veloz plena de pó fino e vil. Uma nuvem que se rasga sobre a água comprida da beira do mar. As rugas de minha mão acentuadas pelo batom que limpo da boca mal utilizada no fim do dia. A folha molhada de papel se desfazendo numa poça. Incomensuráveis pelos a cobrir cabeças descobertas sob um sol de rachar. Folhas que se ajuntam numa pequena oca frágil e vacilante no canto do meio-fio. A fuligem negra que aveluda tudo com um toque de imundice e conforto irremediável. E a ponte de minha córnea a piscar maravilhada com nada.
O que me custa, afinal? Há custo, sim, tenho certeza. O que não custa não existe no planeta de verdade. Meu calor, minha alma, minha cidade, meu mar, meus sapatos baixos, suas calças e as penas da pomba custam, caro. Mas pouco me importa, não escolho nada e fico olhando. Não me imagine pedra plena de dureza. Queima-me. Quase odeio. Vejo saltarem suas veias em cada impulso comum de coração. Tua saliva promiscuamente sendo produzida para um cuspe na sarjeta. Os brotos de suor em suas sobrancelhas e seus olhos amarelados e irrequietos. Tenho vontades de desfazer o fio inteiro de uma só vez. Descascar cada camada do que se presentifica com minhas próprias unhas. Uma declaração de completo ímpeto sobre o que me realiza. Pedi opinião? Não. Somente me faz arrepiar de pungência cada vez que continuo teimosamente a ocupar ar. Quieta, explodo as fronteiras visíveis e não perco vontade alguma de continuar. É o dia uma vez mais e minhas tripas retorcendo diante de mim e de mais ninguém. A impressão é que somos calos, cicatrizes fendidas eternamente entre o que amargamos ter sido e a inatividade de ser ainda mais pra frente. Faça-me feliz e me esqueço, até me lembrar.

Uma descarga elétrica que me eriça os pelos da nuca e trinca os dentes sob minha flácida língua adormecida. Faísca. Não se trata de pensar em palavras exatamente, palavra alguma. Não crio mundo interior, não posso, não sou capaz. Sinto meus ossos feitos do avesso, minha carne colada em cada parede que se ergue, meu cérebro funcionando nos circuitos de rádio e televisão com volume bem alto, meus pés sob os cascos secos de todo animal, meus cabelos são raízes, e meu sexo nutre todas as torneiras. Quero minha parte só, que é tudo, e assim meu corpo branco não suporta. Atravessada involuntariamente. Sinto amor em cada beijo trocado por lábios de outrem. Sinto a ira de imemoriais exércitos sedentos. Brota-me uma lágrima para cada soluço perdido pelas esquinas. O calor que me dá no peito em cada abraço dos moleques felizes. Só não sei se tudo me pertence ou se somente interferi no que não devia. Talvez, pois. O tudo é que me possui.
Não quero a mágica de ter uma astronômica paixão. Minha magia já existe, e me cansa até. É só o primeiro passo que me aterroriza. Esse que já se faz sem minha permissão, que já foi dado e me pôs aqui de novo olhando meu reflexo inócuo e opaco na vitrine da loja que paramos há minutos. E as jabuticabas de meus olhos assistindo à rua atrás de nós passar ao contrário. E você aí, e eu aqui e um silêncio no meio que só falta ter reflexo também.
Caio no torpor da espera. Minha vida sempre foi espera. O espetáculo particular que meus olhos mais velozes que meu pensamento me fizeram público. Só que nunca tenho tempo nem de bater palmas, recomeça. Lembro do tapa que mamãe me dera no rosto certa vez e sem perceber já chorava muda e inerte. A santinha que chora. Meus vestidos de pequenas estampas que fico admirando, vislumbrando cada florzinha que explode na ponta duma linha corrida coalhada de outras flores iguais. A água pingando da bica devagar e gorda em cada gota que me divertia infinitamente nas tardes de adolescente. Lembro das bocas falantes e eu só conseguindo prestar atenção ao balé dos movimentos da língua, o brilho dos dentes amarelos dos outros e os pingos de saliva que saltavam esporadicamente; minha cara vidrada sem compreender palavra que havia sido dita. Não posso mais, feneço de felicidade fácil com qualquer coisa e isso me encerra em tudo, menos em mim mesma.
É como se com um giz eu finalmente riscasse meu contorno. Fazendo voltas, dando-me dedos nas mãos verdadeiras por fim. Uma caneta mais forte me dando, um a um, fios de cabelo ondulado. Imprimir digitais nos dedos do pé, para uma pegada com meu peso e minha altura misteriosamente precisos na areia. E em minhas páginas em branco me dar nome, endereço, idade, amor, limite, finitude.
Uma gota salgada escorre de meu nariz e me chama. Meus olhos não pararam de trabalhar, mas, como já disse, sem eu perceber. Você coloca a mão no bolso apertado, São suas veias sobre o fino braço. É sua pele firme e russa com a cor mais bonita que já vi. Seus dedos voltando do fundo com o maço de cigarros amassado. Sua mão que retorna e traz a roxa caixa de fósforos linda como um presente. O risco brilhante, a fumaça, a ponta acesa, mais fumaça, o balanço e o pequeno palito cai no chão como um corpinho de boneca. Seus lábios mais grossos que os meus beijando o filtro branco. E a dor que me dá no peito, pela fumaça, pelo espetáculo.
Não preciso, me basto sozinha. Mas quero, com toda a força do que já percebi, ter finalmente a fraqueza de ser gente, e só. Não é felicidade a palavra, pois essa eu já conheço. É uma que talvez não exista, não que eu saiba. Preciso encontrar a palavra que procuro por querer. Escrava de minha plenitude, eu preciso finalmente ser de verdade, ser minha para poder me dar aos outros, a tudo.
Uma espuma parece agitar minha garganta. É minha deixa, agora sou eu quem vai morrer e não mais o segundo que passa. Perdendo o foco num só instante, abro a boca de leve e deixo sair minha sentença que não sei se é fatal, mas é a que preciso.


─ Eu gosto tanto de parafuso e prego, e o senhor?

Sinto-me arrebatada. Pronto, cá estou eu de verdade.


Escrever – a que será que se destina?

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Aqui me propus a escrever. Mesmo que escrever seja algo de indomável, aqui é a escrita que tento habitar sobremaneira. Inutilidade diária frente a um produtivismo consumado, escrever é sortilégio e riso, pois escapa. Lança, percorre, fura, turva, estraçalha – e o que menos importa é o alvo.

Claro que se tem técnica, certos calos nos dedos e insistência para repetir palavras intermináveis, mesmo que muitas vezes fiquem a rolar na boca feito bagaço de cana ou fiapos de manga entre os dentes.

Não se escreve bem. A bela escrita, essa do talento quase orácular, essa que todos buscam acessar em meditações e receitas gourmet, paira sublime e intocada, mas ninguém sabe quem diz qual é a palavra polida e a bruta. Sabe-se sim, mas dizer em voz alta quem escolhe é tiro no pé, ou melhor, nas mãos, olhos e ouvidos.

Escrever bem, isso é para ostentador pequeno, para intelectual acuado em mísera fortaleza de papel. Eles sim escrevem bem, fazem críticas primorosas, conhecem o que tem de se saber para poder ler qualquer texto além do texto, e veem ainda mais além do que qualquer cidadão ludibriável pela arte de letras. Escrivãos arvorados a escritores, pois essa dita arte literária dominada por estes mesmo intelectuais é muito mais repetida pela função de escriba prestidigitador que por inspiração. Os sublimes donos dos sentimentos depurados, que enxergam nesse humano animal certo toque divinal dum verso perfeito. Esses Olavos Bilacs que enchem de traços rebuscados essa covardia que é ser intelectual, escolhem.

Não quero isso. Eu, desde que aquele filho do carbono e do amoníaco me deu sina, que perdi muitas vezes a voz frente ao mercado editorial, insisto.  Mas faço petulância feito carrapato que faz comichão leve só a pedir ajuda pra furar mais fundo a pele e engordar enquanto caminhamos no couro uns dos outros. Não quero ouro algum das palavras, pois elas são meu sangue, meu respiro.

Escrevo como quem devassa a vida, num desejo tão grande de aproximação que fico a babar com um olhar da rua e espumo de tédio ouvindo os grandessíssimos eloquentes de nossos tempos – esses com muito mais updates e argumentações capciosas do que você mero medíocre do contemporâneo. Apenas curta, por favor. De post em post perco completamente a vontade de ler, mesmo que esse seja um dos meus maiores prazeres. Mas leitura, arte e vida pra mim é a mesma coisa, e tudo que tem fome e luxuria me atrai muito mais que referências bibliográficas.

A vida mora em tudo, mas nas frases é artesanato fazer brotar um pulso bom, um rompante digno de suspiro e certo veneno anti-monotonia que dure gerações. Não recheio papéis da mesma forma que não amolo as facas cegas da violência. Minha bruteza é de outro gume, é de sorriso, de carne, de gente boiada viva, de ave de céu amplo, de luta corporal seja no grito ou no afago.

Em tempos de mesquinharia e hipocrisia pra que escrever? Que artista é esse? Escrever é pra acordar afeto e nutrir. Rosas pequeninas. O resto é sanha de viver, de fazer gente e mundo feliz, no correr a vida em sua magia potente, e só.

Apensa a matéria viva era tão fina.


Re-voar

Não sei como tirar isso da alma, do sistema.

Diria que sinto um vazio, mas não se trata disso. Um aperto de desprendimento, algo mais próximo de uma taquicardia sem propósito. A indeterminação dos dias abarco com afazeres, encontros furtivos; ocupações mínimas diante do assunto do coração, mas plenas de realização e contato real. É algo a se aprender. Esse desapego. Deixar os atos mandarem no coração como disseram tantos caminhos. Resigno, sinto que estou sim conseguindo trilhar algum caminho de verdade, que as cores do dia quente se fazem, sei disso, abraço isso, aceito sim. Mas subsiste ainda fino rio frio, ponta de gélida brisa que escapa. 

Vicio cultivado, certo apaixonamento que ainda nutro pelas coisas, caminho que ainda se mostra certo mesmo que tenha de ser adormecido por agora. Um céu escuro e calmo com aquela lua plena e minguante praticamente estática.

Estrelas aos milhões a real mancha láctea na noite incólume a me dizer, sim, é tempo de migrar.


Fome

porque não pude encontrar comida que me agradasse.

Parcerias que brotam, é disso que precisamos. Aqui mais uma que se fortalece, texto meu compondo o projeto “11 olhares sobre a obra de Franz Kafka 90 anos após sua morte”, convite feito pelo camarada Luciano Bedin. Muito feliz de estar junto a esses nesse olhar para uma obra ainda pulsante, perturbadora e extremamente atual como a de Kafka. Esse texto foi produzido inspirado pelo conto “O artista da fome” e segue cheio de energia. Muita alegria e pulso vital!

Ao tocar Um artista da fome, de Franz Kafka

Saciedade? A aproximação do corpo do jejuador parece inusitada. Esse que se senta e parece mais se deleitar do que fenecer de privação. Energia apesar. Saltos damos entre sua magreza em costelas expostas e as ruas gordas que o rodeiam, e,incólumes, ficamos próximo demais. Costurando o que se passa pelos cantos do mundo e junto a esse que se nega para permanecer tateando zonas antes dormentes. Não se trata de recusa, e sim um convite à transformação.

Propósitos muitos, mas fracos como a pele tenaz desse humano.Na companhia do relógio, que frente à avidez do jejum se desfaz, ele permanece. O mundo derrete dentro dele, estremecemos junto a ele. Da fascinação receosa das crianças aos rostos de sorriso amarelo das belas moças que o erguem ao final dos 40 dias sem alimento, provamos esse incômodo. A dúvida nos mantém em sua companhia. Ilusão. Fácil. A ótima companhia de mutação.Algo impele e, mesmo indócil, perdura plácido. A carne treme, os passos se fazem audíveis, as pessoas se empurram desajeitadas pelo curto caminho coletivo, as feras rugem e, mesmo sentindo tudo como uma mandíbula deslocada, algo fino persiste.Uma fome profunda e oca.

Estar perto de tudo –rodando entre os transeuntes, entrando em diversos corredores, clarões e escuridão silente –,é a armadilha.Comungando algo além, algo a escorrer pelo invisível que nos espreita na concretude das cenas. Ele, que insiste em se entregar e arruína o passeio jocoso ao circo. Como os cabelos que crescem, perdemos a forma ao virar palha, jaula, gole d’água.Não há próprio despertar, talvez certo delírio de fraqueza nos penetre, um gosto de nada sobre a língua…o gosto de gente que não estamos acostumados. Novelos de informação,a precisão das negociatas, o teatro curto na calçada e nossos olhos pregados no desaparecimento.

Artista de espetáculo caduco. De destreza não se fazem valores, se faz ficção pulsante talvez, não valores. Pálpebras que piscam de tédio frente a só mais um homem que quer algo com veemência, enquanto a pelagem lustrosa do bicho encarcerado faz a saliva grossa brotar em satisfação. Quem ainda quer saber de um homem que se mantém vivo em penúria? O que sustentaria a atenção em decrepitudes tão humanas? Pouco, quase nada mesmo.

A quem não o sente, não é possível fazê-lo compreender.

Satisfações fazem público, e saber de alguém que deliberadamente se torna a própria sanha de viver é, no mínimo, desinteressante. Não preciso de fome, tenho meus sapatos apertados o bastante para me lembrar que também sou gente, daí ver os bizarros me afrouxa o cinto pelo menos um instante – diríamos austeros frente à decadência. Mas ele dura, algo ainda se insatisfaz no jogo do contato, e acaba adocicando demais nos lábios dos consumidores.

– porque não pude encontrar comida que me agradasse.

Porque parar agora? Pouca paciência. Cruel. Uma respiração, ritmos impostos. Precisamos aplacar o coração para sobreviver nos segundos áridos. Mas ainda assim algo que desfaz, que refaz em outra pele nova. Desaparecer por vontade nos racha. Com ele desaparecemos um pouco, destroçados nessa vida faminta. Ávidos enfim.

 Texto publicado na Revista ARTE – SESC, nº 16, segundo semestre de 2014.


Ar… enfim.

pezinhos no vento

Ar. Sem espessura, pressão ou afrouxo. Irreal presença, como um humano na rua. Os olhos não enxergam e o stand-by vai se tornando algo paranoico na busca de porto ou engaste que nos triangule, enfim, a cabeça sobre os ombros , as mãos a distanciar arestas tortas enquanto o ar se recorta em losangos espectrais pelas frestas da rede de proteção. Dissolução não capta o nível de reconexão e abandono que arrasta.

Perder a pele enfim, rompendo o teto numa lufada de nada, alçando algo de plenitude, mas plena de silêncio.

Algo que encontrei numa despercebida parada, nesses momentos nos quais pessoas se tornam cílios móveis por entre a calçada e uma aura desfocada no envolve. Rudes a chacoalhar enquanto, num suspiro, dragão de nuvem. Inalcançável, incansável e irrisório. Fuga nunca, desconsolamento maior, menor em movimento, mas com intento de universo mudo. Vácuo necessário.


Deixa-me instantes. Sou outros por demais, já estou a desaparecer e esse nada é o que renova o desejo garoto. Deixa-me que vens comigo ser poeira vez mais, pra quem sabe tu consigas ser asa que voa também. Abandono é covarde. Digo, sim, de total falta de tino, talvez de sorriso, de toque de dedo, mas falo de tudo na busca das estrelas. Deixa-me, ou vens comigo?